Por Pedro Grigori
Agência Pública
O Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ) investiu em ações de combate ao comércio de agrotóxicos ilegais no Brasil. Entre 9 e 11 de abril de 2018, o Escritório de Patentes e Marcas dos EUA (USPTO, na sigla em inglês) realizou treinamento em Foz do Iguaçu, no Paraná, para cerca de 40 policiais e agentes de fiscalização nas áreas de meio ambiente e agricultura do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.
O objetivo era ensinar medidas de controle fronteiriço, análise de evidência e melhores práticas para combater o comércio de pesticidas ilegais no Mercosul. Procurada pela Pública, a embaixada americana confirmou que realizou o treinamento e informou que ele foi feito a pedido de um grupo de “parceiros públicos e privados” do Brasil e da região. Mas não quis revelar quanto custou o treinamento, que não havia vindo a público até agora.
O evento é detalhado no Relatório Anual de Propriedade Intelectual do governo Trump para o Congresso, entregue em fevereiro deste ano pelo Executivo americano para o Congresso. O documento de 197 páginas detalha ações dos dois primeiros anos do governo de Donald Trump para promover a proteção e a execução dos direitos de propriedade intelectual nos EUA e no exterior. Ele relata que o workshop foi realizado a pedido do grupo CropLife, que representa multinacionais produtoras de pesticidas. A apresentação do documento destaca que a administração Trump considera a propriedade intelectual como “fundamental para ajudar a garantir o futuro de nossa economia inovadora e manter nossa vantagem competitiva”.
Murilo de Souza, do Grupo de Trabalho de Agrotóxicos da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), explica que pesticidas ilegais são bastante prejudiciais à saúde. “São agrotóxicos que não conhecemos ou que não foram testados para saber suas ações. Há agrotóxicos sendo contrabandeados que têm princípios ativos proibidos no Brasil há muitas décadas, que gera diversas consequências ao meio ambiente e à saúde.”
Para ele, “a aproximação do Brasil e dos Estados Unidos para controlar o uso do agrotóxico ilegal é também um modo de defender as grandes corporações que detêm o poder sobre esses agrotóxicos que estão sendo pirateados. São empresas multinacionais muitas vezes americanas, europeias e asiáticas, que saem prejudicadas pelo contrabando”.
Segundo a embaixada dos Estados Unidos, os produtos químicos agrícolas ilícitos custam ao Brasil US$ 600 milhões em perdas anuais e respondem por quase um quarto do mercado de agrotóxicos brasileiro.
O Brasil é o maior consumidor de agrotóxico do mundo, de acordo com os dados mais recentes disponíveis. Só em 2013, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), foram gastos US$ 10 bilhões em agrotóxicos. Grande parte desse lucro vai para fora do país, o que faz o comércio ilegal de pesticidas no Brasil trazer prejuízo para diversas empresas estrangeiras. Reportagem da Pública e da Repórter Brasil mostrou que apenas cerca de 26% dos produtos ativos (matéria-prima para o agrotóxico) usados na agricultura brasileira são produzidos no país.
Até o momento, dos 239 produtos agrotóxicos com registro deferido pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL), apenas 38,9% foram para empresas brasileiras. Quarenta e quatro registros foram para empresas com sede na China, e 19 para grupos dos Estados Unidos.
Atendendo pedido
O treinamento em Foz do Iguaçu teve participação de membros da seção de Crimes Informáticos e de Propriedade Intelectual do Departamento de Justiça Americano, a Agência de Proteção Ambiental e a Agência de Fronteiras e Alfândega. Além dos representantes americanos, as principais empresas da indústria produtora de agrotóxicos também estiveram no local – que não foi elucidado pela embaixada – e compartilharam com os policiais estudos de caso e insights para melhorar a caça ao comércio ilegal de pesticidas.
O workshop fez parte de um programa americano de combate à pirataria – seja a cibernética ou a física, como a venda de roupas, tênis e agrotóxicos ilegais. O objetivo é “desenvolver habilidades, conexões e estruturas no exterior para promover aplicação de leis”.
As primeiras ações ocorreram em 2016, quando o USPTO iniciou um programa de orientações a procuradores e investigadores brasileiros no combate à comercialização de produtos piratas e violações de propriedade intelectual. Desde então, o governo americano mantém um conselheiro internacional de Informática e Propriedade Intelectual do Departamento de Justiça lotado no consulado, em São Paulo.
Segundo a embaixada, o americano reúne-se com autoridades e titulares de direitos para discutir tendências e investigações em andamento sobre o tema da pirataria. Todas as ações do projeto foram bancadas pelo gabinete de Assistência ao Desenvolvimento Internacional do Ministério Público (OPDAT), do Departamento de Justiça dos EUA, e pelo o escritório de Direitos de Propriedade Intelectual da USPTO.
A Pública questionou a assessoria de imprensa da embaixada dos Estados Unidos sobre o valor investido pelo governo dos EUA nas ações, mas o órgão respondeu apenas que o financiamento ocorreu “como parte da nossa cooperação contínua com parceiros internacionais”.
Antes do Brasil, o USPTO realizou workshops como o de Foz do Iguaçu em países do Sudeste Asiático. O pedido para que o treinamento fosse feito na América do Sul veio da associação CropLife Latin America, uma organização que representa cinco gigantes do mercado de agrotóxicos: Bayer CropScience, a FMC, a Syngenta, a Basf e a Sumitomo Chemical. Além disso, o grupo representa também rede de 25 associações em 18 países da América Latina. A organização tem sede em San José, na Costa Rica, e escritório em Bogotá, na Colômbia. A Pública solicitou entrevista com o grupo, que não respondeu até a publicação da reportagem.
O Relatório Anual de Propriedade Intelectual do governo Trump para o Congresso cita o workshop no Brasil e diz que ele ocorreu devido a pedido da CropLife, além de detalhar o treinamento apresentado pelos representantes americanos.
“Discutiram-se as leis e regulamentações que abrangem a venda, importação, exportação e uso de pesticidas, e as partes responsáveis por testes inspeção, auditoria e aplicação dessas leis. 2. Compartilharam-se estratégias. 3. Apresentaram-se estudos de caso sobre as melhores práticas em investigação, processo de crimes ambientais e aplicação de direitos de propriedade intelectual.”
O documento menciona ainda que o último dia do programa foi destinado a apresentações de empresas privadas do setor agrícola sobre tendências e desafios na proteção e aplicação da propriedade intelectual.
Em um informativo de junho de 2019 o Departamento de Justiça americano foi mais direto. Destacou o saldo positivo do treinamento no Brasil, justificando que, em menos de uma semana após a conclusão do programa, participantes da PRF apreenderam 300 quilos de pesticidas falsificados da Syngenta em uma agência dos Correios em Cascavel, no Paraná. Segundo o Departamento de Justiça americano, os oficiais da PRF afirmaram que o programa é essencial para o sucesso do planejamento e execução da operação.
A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da PRF, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem.
A Pública questionou a embaixada dos Estados Unidos sobre o objetivo do governo dos EUA com o evento. Por meio da assessoria de imprensa, o órgão reafirmou que foi um pedido de parceiros públicos e privados no Brasil.
“Os pesticidas falsificados representam uma séria ameaça à saúde humana, animal e agrícola no Brasil e no mundo. Estes produtos contêm frequentemente níveis proibidos, restritos, ou não regulamentados de produtos químicos que contaminam o solo e as águas, e podem servir como uma fonte de renda para organizações criminosas transnacionais. Eles devastam os mercados de produtos específicos e prejudicam a reputação das regiões agrícolas, produtores de alimentos e marcas”, informou em nota.
O Ministério da Agricultura confirmou a participação do governo federal no evento de Foz do Iguaçu. “Se trata de uma iniciativa isolada das autoridades norte-americanas para colaborar no combate ao contrabando. Por enquanto a cooperação em questão contempla apenas a troca de informações entre os países envolvidos podendo evoluir para ações conjuntas no futuro”, informou em nota.
A indústria do agronegócio é uma das principais interessadas no combate ao comércio de agrotóxico ilegal, pois a venda do produto ilegal traz prejuízo direto para as empresas produtoras de pesticidas. Além da CropLife, que pediu a realização do workshop do Departamento de Justiça, há também outras organizações que lutam pelo tema.
Um deles é o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos (Sindiveg), que debate o assunto há 18 anos e atua, por meio da Campanha contra Defensivos Agrícolas Ilegais, orientando agricultores sobre os riscos que esses produtos podem causar e como identificá-los e comunicar o crime às autoridades. O Sindiveg participou do workshop promovido pelo Departamento de Justiça dos EUA. Pela assessoria de imprensa, comentou que o evento discutiu o combate ao mercado ilegal de defensivos agrícolas e foi “uma ótima oportunidade para reforçar as orientações sobre os riscos que esses produtos podem causar e como identificá-los; além de garantir que as boas práticas agrícolas sejam aplicadas no campo.”
O professor Carlos Domingos da Silva, da Universidade Federal Fluminense (UFF), destaca que o treinamento do Departamento de Justiça americano está focado principalmente no contrabando. “Mostra um aspecto de interesse financeiro dessas indústrias, com treinamento das agências para combater o agrotóxico que passa ilegalmente de um país para o outro, comum na área de fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai.”
Pela assessoria de imprensa, o Sindiveg informou em nota: “É importante que o agricultor fique atento a sinais de ilegalidade do produto (agrotóxico), como preços muito abaixo do valor de mercado da região, embalagens sem lacre ou com rótulo mal colocado, rótulo sem nome do fabricante ou dados do órgão registrante. A legislação brasileira exige ainda que rótulos, bulas e embalagens estejam escritos em língua portuguesa”.
O impacto dos pesticidas ilegais
Os agrotóxicos ilegais são aqueles que foram reprovados ou ainda não passaram pelas avaliações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Ministério da Agricultura. Os três órgãos avaliam os riscos que os pesticidas causam à saúde e ao meio ambiente, além de identificar se os produtos funcionam.
Entre os produtos ilegais há aqueles que imitam um produto vendido legalmente no país, mas com um custo abaixo do encontrado no mercado; e os contrabandeados, que não são permitidos no Brasil, mas são trazidos ilegalmente de um país onde a venda é permitida. Além deles, também são considerados ilegais os agrotóxicos vencidos.
O professor do Departamento de Ciências Ambientais da UFF Carlos Domingos da Silva explica que não é porque um produto agrotóxico foi liberado para ser utilizado em um país que ele é seguro para outro. “A maioria das produtoras de agrotóxicos são multinacionais da América do Norte, Europa ou Ásia, onde há outras condições climáticas e de solo. São condições diferentes das do Brasil, então não há comprovação de que será seguro contrabandear um produto desses e usar no cerrado ou na região amazônica, por exemplo.”
A utilização e o comércio de agrotóxicos ilegais são crime em todo o Brasil. Os delitos de produção, transporte, compra, venda e utilização de agrotóxico contrabandeado ou pirateado são enquadrados na Lei dos Crimes Ambientais (Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1988), contrabando ou descaminho (art. 334 do Código Penal) e na Lei dos Agrotóxicos (Lei 7.802/89). O enquadramento legal prevê penas de um a seis anos de detenção e a destruição das lavouras onde for comprovado o uso dos produtos ilegais. No caso dos produtos vencidos, mantê-los em depósito é crime ambiental sujeito a multa de R$ 500 a R$ 2 milhões, de acordo com o Decreto 6.514/2008.
O combate ao comércio ilegal de agrotóxicos é feito por diversos órgãos, como os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente, as secretarias estaduais e forças policiais.
Os produtos ilegais também costumam ser apontados pelo governo como causadores de males oriundos do contato com pesticidas. Em março deste ano, a Pública e a Repórter Brasil publicaram reportagem mostrando que em menos de três meses mais de 500 milhões de abelhas foram encontradas mortas no Brasil. A causa apontada em testes é o contato com agrotóxicos à base de neonicotinoides e de Fipronil.
Em abril, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, participou de uma audiência pública na Câmara dos Deputados em que comentou o tema e culpou os agrotóxicos ilegais. “Esse é o grande problema dessa fila enorme que não registra e testa produto. Esse produto muito provavelmente entrou de maneira ilegal no Brasil e está sendo usado de maneira errônea”. Segundo ela, o governo deve aprovar mais agrotóxicos para impedir o uso de substâncias ilegais.
Porém, mesmo com o aumento no ritmo de aprovação de agrotóxicos no Brasil, o número de pesticidas ilegais apreendidos continua subindo. Segundo a Polícia Rodoviária Federal (PRF), apenas no primeiro trimestre de 2019 foram apreendidos 2.740 kg de agrotóxicos contrabandeados nas rodovias do Mato Grosso do Sul: 115% a mais do que no mesmo período do ano passado. O estado, que faz fronteira com o Paraguai, é usado por contrabandistas como porta de entrada para agrotóxicos que acabam sendo repassados para todo o país.
Murilo de Souza, da ABA, destaca que os dados da PRF evidenciam que o aumento no contrabando ocorre no mesmo período em que a aprovação de novos registros cresce. “O discurso de liberação de novos registros contribui no processo de comercialização de agrotóxicos que são altamente perigosos para o meio ambiente e a saúde. E esses são interessantes pois mostram que a postura política adotada pelo governo, de liberar mais agrotóxicos, não está diminuindo o uso dos ilegais”, diz.
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