Vivemos um período de esquizofrenia coletiva, avalia especialista


Fogo atinge área próxima a Altamira, no Pará, em agosto deste ano. (Nacho Doce/Reuters)

Patrícia Azevedo

No dia 10 de agosto, agricultores e grileiros da Região Norte do país teriam iniciado um movimento simultâneo para incendiar áreas da Amazônia, a maior floresta tropical do mundo, em apoio ao presidente Jair Bolsonaro e a suas medidas para enfraquecer a fiscalização de órgãos ambientais. A data ficou conhecida como “Dia do Fogo” e o caso está sendo investigado pela Polícia Federal (PF) e pelo Ministério Público Federal (MPF). “Se o malfadado ‘Dia do Fogo’ for realmente comprovado, é a prova de que estamos em um período de esquizofrenia coletiva”, avalia Daniel Caixeta Andrade, presidente da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica (Ecoeco) e professor do Instituto de Economia e Relações Internacionais (Ieri), da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

De acordo com o professor, era esperado que a retórica agressiva do governo atual resultasse em algum fenômeno atípico. O que foi surpreendente, para ele, é que na primeira estação seca da Amazônia o atípico já apareceu: um aumento expressivo nos focos de queimadas. Assim como a liberação de agrotóxicos, Andrade aponta que o fenômeno é repudiável por boa parte da população, mas não algo inesperado. “Basta um conhecimento político mínimo para reconhecer a aliança política que suportou a eleição do atual presidente. As contrapartidas começam a aparecer”, aponta.

O professor considera que queimadas e agrotóxicos são partes de algo maior – a reunião de forças retrógradas do Brasil para a imposição de um modelo anacrônico de sociedade. “Modelo este muito ligado a uma ideia de gestão conservadora, como se a sociedade fosse uma empresa projetada para gerar lucro, e que despreza o debate público, democrático e plural”, completa Daniel Caixeta Andrade.

Repercussão

Fato é que os episódios recentes têm afetado a imagem do Brasil no exterior. Conforme lembra o especialista, o país sempre foi considerado um líder nato nas questões ambientais. Primeiro, porque possui grande diversidade e abriga a maior parte da maior floresta tropical do mundo. Segundo, porque sediou duas grandes cúpulas da Organização das Nações Unidas (ONU) para as questões ambientais, em 1992 e 2012. “Além disso, sempre fomos reconhecidos pela nossa flexibilidade, pela heterogeneidade/diversidade e cosmopolitismo de nossa sociedade. Não é à toa que temos o privilégio de tradicionalmente iniciarmos os debates nas Assembleias-Gerais das Nações Unidas”, acrescenta.

No entanto, essa imagem de um país ordeiro e comprometido com a fronteira civilizatória está ficando turva e pode sofrer reveses importantes, principalmente se o Brasil insistir numa ideia anacrônica de soberania, acredita o professor. Para continuar sendo protagonista nos debates mundiais, o país precisa urgentemente contribuir para a Agenda 2030, que indica 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Em entrevista exclusiva ao Dom Total, Daniel Caixeta Andrade aborda outros aspectos do cenário ambiental brasileiro, as atuais crises econômica e política, o papel dos jovens e os 25 anos da Ecoeco, entre outros pontos. Confira abaixo:

Como o senhor avalia o atual cenário ambiental brasileiro? Continuamos em um momento de fragilização excessiva da institucionalidade ambiental ou algumas iniciativas positivas já começam a aparecer?

O cenário ambiental brasileiro não é o desejável, principalmente num momento em que o mundo está discutindo cada vez mais seriamente como enfrentar a emergência climática. Vemos neste momento, no Brasil, uma volta ao debate ambiental da década de 1970, em que ficou muito nítida a polarização entre conservacionistas e crescimentistas. Estamos, portanto, revivendo este contexto. Quanto à fragilização da institucionalidade ambiental brasileira, este é um processo mais longo que se inicia em meio à reforma do Código Florestal, em 2012. Não há dúvida, porém, que este processo entra numa nova fase de aceleração em 2019 por dois motivos principais: a retórica do governo e a crise fiscal brasileira. Mas iniciativas positivas se fazem notar, como o ativismo jovem, liderado por Greta Thunberg, e a realização do Sínodo para a Amazônia.

Como as crises econômica e política interferem na questão ambiental?

No Brasil percebe-se a reiteração da seguinte dinâmica: nos momentos de crise econômica e política, sempre há a priorização do restabelecimento do status quo, o que resulta em fenômenos ou pactos de conciliação. A questão ambiental é prejudicada em duas dimensões: primeiro, ela é mais uma vez preterida nestes momentos de crise; segundo, a necessidade de recuperação da crise reitera velhos métodos e atividades nocivas ao meio ambiente. Um exemplo é o que aconteceu na Cúpula de Johanesburgo, em 2002. Os resultados tímidos se devem ao fato de que naquele momento a prioridade geopolítica era combater o terrorismo. Da mesma forma, na Rio +20, em 2012, a prioridade era a recuperação da crise financeira de 2008. Nas eleições brasileiras em 2018, a excessiva polarização política obliterou o debate ambiental sério.

O que é a economia ecológica? Ela tem se fortalecido no decorrer dos anos?

De maneira lacônica, é um ramo científico que busca integrar numa perspectiva transdisciplinar as contribuições das ciências sociais (economia, principalmente) e ciências naturais (ecologia, principalmente) para o estudo e a busca de três objetivos simultâneos: a sustentabilidade ecológica, a justiça social intra e intergeracional e a eficiência econômica. Nas palavras de Robert Costanza, um importante pesquisador estadunidense, a economia ecológica é a ciência da gestão da sustentabilidade. Formalizada há três décadas, a perspectiva econômico-ecológica sempre foi considerada marginal e periférica na academia brasileira. Mas temas como a emergência climática e colapso da biodiversidade vêm colocando cada vez mais a economia ecológica em evidência. O momento atual é sui generis: internamente, o momento político é considerado pouco animador para debates ambientais, mas globalmente o meio ambiente vem ganhando atenção política, midiática e acadêmica. A economia ecológica pode e deve ser invocada para guiar os debates necessários. Os pesquisadores da área devem ter a maturidade acadêmica requerida para se inserirem nos espaços apropriados.

Como vê a relação das reservas ambientais e das terras indígenas com a economia e a preservação?

O Centro de Resiliência de Estocolmo, referência nos estudos sobre ciência da resiliência, vem pelo menos há uma década chamando a atenção para as fronteiras planetárias. São limites que uma vez ultrapassados podem colocar a humanidade em um “espaço de operação” não seguro, com riscos de colapsos e consequências catastróficas e irreversíveis. Por isso, muitos autores defendem que é preciso restaurar e proteger parte dos ecossistemas globais de maneira a garantir este espaço seguro para nossa espécie e não transgredirmos estas fronteiras. É vital, portanto, que sejam criados e ampliados santuários naturais para garantir a contínua oferta de serviços ecossistêmicos e a própria biodiversidade. Seriam inimagináveis os impactos de um modelo econômico predatório que pereniza o extrativismo primitivo na Amazônia brasileira. Com relação aos indígenas, deve-se lembrar que sustentabilidade é uma ideia ampla e multidimensional, que incorpora a manutenção de modos de vida alternativos e enfatiza a importância de conhecimentos tradicionais. A sustentabilidade não deve ser vista apenas como tema da dita ciência normal.

Como garantir que a carne e a soja brasileiros tenham certificado de procedência e não contribuam para o desmatamento da Amazônia?

Creio que este é um problema que tende a ser mediado por questões mercadológicas, em primeiro lugar, e por normativas ao estilo de comando e controle, em segundo lugar. Os países importadores de commodities, sejam elas vegetais, animais ou minerais, vêm demandando crescentemente que as atividades econômicas que geram aqueles bens produzam o menor nível possível de externalidades. Fundos que gerenciam volumes gigantescos de recursos ao redor do mundo tendem a se afastar de atividades econômicas nefastas ao meio ambiente. Acho que é uma tendência irreversível os negócios se distanciarem, pois, da imagem de que contribuem para a destruição ambiental. Isso tudo em função do exponencial crescimento da conscientização ecológica. Veja, por exemplo, as ondas de movimentos pelo clima nas últimas semanas. A novidade aí é o fato de que são liderados por uma geração supernova. Em princípio, é perfeitamente possível que o Brasil continue exportando soja ou carne sem que seja necessário derrubar uma árvore da Amazônia. Cientificamente e do ponto de vista técnico, este trade-off (produzir carne/soja ou destruir a Amazônia) já está superado. Mas ainda persistem razões políticas para que este falso dilema ainda seja ventilado.

Em carta no site da Ecoeco, o senhor deixa uma mensagem especial aos jovens e estudantes, para não desanimarem. Ao mesmo tempo, acompanhamos cortes de recursos para educação, polarização de ideias sem o devido debate e aprofundamento. Onde esses jovens podem buscar energia e incentivos?

Eu me dirigi aos jovens porque são eles a verdadeira força motriz das mudanças. Como professor, não posso jamais me entregar ao pessimismo generalizado. Muito pelo contrário, sinto que neste momento todos nós devemos ter especial atenção para com o estado de espírito da sociedade brasileira. Não estou dizendo nada sobre proselitismo ou coisas semelhantes das quais somos acusados de prática dentro das universidades. Isso não corresponde à verdade. Refiro-me aqui a uma perspectiva evolucionária da sociedade e do sistema econômico e à compreensão de que momentos turbulentos são inerentes à dinâmica de sistemas sociais complexos. O que não podemos admitir é a deliberada manipulação do moral da sociedade em nome de falsos valores. Tudo aquilo que está fragilizado é mais fácil de ser tomado e vilipendiado. Por isso, sou um entusiasta da chama otimista e da vibração que vem dos jovens. Greta Thunberg é a expressão atual desta efervescência.

Neste ano, a Ecoeco completa 25 anos de existência, comemorados com congresso na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Conte-nos um pouco sobre a importância e a proposta do evento.

Acabamos de realizar na última semana de setembro nosso encontro bienal de economia ecológica. A despeito das condições adversas do ponto de vista do financiamento, o evento foi muito bem-sucedido e comemoramos nossas bodas de prata e homenageamos a principal referência teórica da moderna economia ecológica – o matemático e economista romeno Nicholas Georgescu-Roegen. Tivemos um bom público e uma excelente qualidade dos debates acerca do Antropoceno e as possibilidades de um colapso global. Antropoceno diz respeito a uma nova época geológica em que as mudanças globais no sistema terra são causadas principalmente por forças antrópicas. Substitui o Holoceno, uma época de cerca de 12 milênios com excepcional estabilidades climática e geológica que permitiram o início do processo civilizador humano. A grande questão aqui é discutir se este processo civilizador humano poderá continuar no novo contexto do Antropoceno. Se sim, em quais bases isso será possível? Se não, estamos destinados ao colapso e à extinção? São perguntas para as quais não é possível fornecer respostas definitivas, mas devemos expor este debate para a sociedade brasileira.

Dom Total