O surgimento do Direito Internacional da Sustentabilidade


sustentabilidade é a tendência internacional mais marcante do último quarto de século, ao lado da globalização. Se a globalização, impulsionada pela revolução tecnológica a partir dos anos 1990, provocou uma intensificação da interdependência dos povos jamais vista, a sustentabilidade – ainda que extrapole a questão ambiental – ganhou força na última década, principalmente, pela ameaça do aquecimento global, que tornou mais clara do que nunca a dependência mútua das nações em relação aoclima. Poucas preocupações são tão globais quanto assegurar a perenidade de nossa espécie no planeta.

A necessidade de assegurar a sustentabilidade de forma mais ampla foi acompanhada da criação de inúmeras normas e instituições internacionais e transnacionais, assim como ocorreu em outras áreas de interdependência acentuada – como a dos Direitos Humanos ou a do Comércio Internacional – que viram surgir ramos autônomos do Direito Internacional destinados a regulá-las. Seria possível, assim, defender a existência de um Direito Internacional da Sustentabilidade emergente que caminha, também ele, para se firmar como ramo autônomo do Direito?

Para atribuir autonomia científica a determinada área, é preciso que esta possua objeto, conceitos, regras e institutos próprios. Mais importante ainda, é necessário que nela possam ser identificados princípios específicos. São esses princípios que compõem o núcleo de um determinado sistema normativo, definindo sua razão e lógica, conferindo-lhe harmonia e coerência e condicionando a interpretação de suas regras.

Para responder à questão acima é preciso primeiro entender, portanto, se o direito que surge como resposta aos desafios relacionados à sustentabilidade, que claramente possui conceitos, normas e instituições específicos, tem também seus próprios princípios.

Destaca-se, nesse contexto, o desenvolvimento sustentável, que como veremos vem sendo tratado, ele mesmo, como um princípio. Sua definição mais difundida é aquela utilizada no relatório que a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU) apresentou em 1987, intitulado Nosso futuro comum – também conhecido como Relatório Brundtland – segundo a qual trata-se de um desenvolvimento “que satisfaz às necessidades do presente sem comprometer a habilidade das gerações futuras de satisfazerem suas próprias necessidades”.

Logo, intrínseca ao desenvolvimento sustentável está a ideia de justiça intergeracional, relacionada à atenção com a preservação da natureza, com a escassez dos recursos naturais e com a gestão responsável dos resíduos. Esta se reflete na conhecida frase de que “não herdamos o mundo de nossos pais, mas o tomamos emprestado de nossos filhos”, e implica na fixação de uma série de outros princípios correlatos, como aqueles da prevenção, da precaução e do poluidor-pagador.

Essa preocupação deve levar em conta, segundo outro conceito muito repetido, ao menos três dimensões que são indissociáveis: a ambiental, a social e a econômica. Esse tripé procura refletir a complexidade da sustentabilidade, que abrange não apenas a preservação do meio ambiente, mas também aspectos de justiça social, desenvolvimento econômico, valorização da cultura, da educação e da ética, entre outros que compõem o quadro necessário ao desenvolvimento das capacidades e ampliação das liberdades de cada indivíduo, melhorando o bem estar da humanidade como um todo.

Assegurar esse quadro é o objeto do Direito Internacional da Sustentabilidade e, para poder alcançá-lo, vem se construindo, ao longo dos anos, um sistema jurídico próprio. Este surge não apenas por meio de iniciativas públicas das mais diversas instâncias do Estado ou das organizações interestatais – no âmbito da ONU, por exemplo, se o comércio internacional conta com a atuação normativa da UNCITRAL (United Nations Commission on International Trade Law), o desenvolvimento sustentável conta com a ação do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente). Ao contrário, sua construção recebe grande contribuição dos atores privados da sociedade global, muitos deles transnacionais, como as organizações não-governamentais (ONGs) e empresas.

É da atividade desses atores – fundamental, ao lado daquela dos Estados e das organizações internacionais, para a governança global da sustentabilidade que é, de fato, descentralizada – que muitas vezes surgem e ganham corpo princípios como o do comércio justo (fair trade), conceitos como a responsabilidade social corporativa, normas e certificações como as da ISO 14.001 e do Forest Stewardship Council (FSC), indicadores e diretrizes como os fornecidos pelo Instituto Ethos, pela Global Reporting Initiative (GRI), pela Câmara de Comércio Internacional de Paris (CCI) em sua Carta de Negócios para o Desenvolvimento Sustentável e pelo Pacto Global que, embora seja uma iniciativa da ONU, reúne mais de 5.200 entidades da iniciativa privada em torno de dez princípios nas áreas de direitos humanos, relações de trabalho, meio ambiente e combate à corrupção. Essa atividade transnacional é essencial para o florescimento do Direito Internacional da Sustentabilidade – em uma contribuição muito parecida àquela que os atores privados deram à formação do Direito do Comércio Internacional, por meio do desenvolvimento da lex mercatoria.

Nos concentraremos aqui, contudo, por uma questão de espaço, no âmbito interestatal de produção desse novo direito, focando nos acordos e na jurisprudência internacional – notadamente naqueles que caracterizam o desenvolvimento sustentável, de forma mais ampla, como princípio hoje incontornável. Estes podem ser divididos em três categorias.

Na primeira, destacam-se as grandes conferências internacionais realizadas pela ONU para cuidar do tema, cujas declarações finais muitas vezes elencam princípios e reafirmam que o desenvolvimento sustentável é um objetivo que os países devem perseguir.

Esse é o caso do Princípio de número 13 da Declaração da Conferência de Estocolmo de 1972, do Princípio 3 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no âmbito da conferência conhecida como Rio 92 – que gerou outros importantes instrumentos internacionais, como a Agenda 21 e a Convenção do Clima, que também fazem alusão ao objetivo do desenvolvimento sustentável –, do item 16 da Declaração da Conferência de Johanesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável, de 2002, e do artigo 1º da Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, de 2012 – a chamada Rio+20.

Uma segunda categoria é a dos acordos que abordam aspectos significativos da sustentabilidade – problemas globais que dependem da cooperação internacional para serem tratados de forma efetiva, como a defesa dos direitos humanos, a garantia de condições satisfatórias de trabalho, a defesa da ética e a condenação da corrupção, a preservação de diferentes ecossistemas e o controle de diversos tipos de poluição. Fazem parte dessa categoria a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar de 1982, aDeclaração da OIT sobre os princípios e direitos fundamentais no trabalho de 1998, a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção de 2005 – isso sem falar nos mais de 250 acordos ambientais multilaterais em vigor que acrescentam novas regras, instituições e princípios ao amplo sistema normativo destinado à promoção da sustentabilidade.

Por fim, é interessante comentar também instrumentos sobre assuntos que, em princípio, não estão relacionados à sustentabilidade, mas nos quais se assume claro compromisso com o desenvolvimento sustentável.

Isso é notado, por exemplo, no âmbito dos processos de integração regional, como no preâmbulo do Tratado de Assunção, de 1991, que constituiu o Mercosul, e no doTratado Constitutivo da União de Nações Sul-americanas (UNASUL), de 2008, onde se diz que a integração da região deverá se fundar, entre outros “princípios basilares”, na “harmonia com a natureza para um desenvolvimento sustentável”. A União Europeia também adota, em diversos de seus instrumentos, o desenvolvimento sustentável como princípio – vide o preâmbulo da versão consolidada do Tratado da União Europeia e o artigo 11 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Além disso, inúmeros dos acordos plurilaterais e bilaterais de livre comércio que vêm sendo firmados nos últimos anos afirmam que o desenvolvimento sustentável é um objetivo – o que se vê, por exemplo, na parte introdutória Acordo de Livre Comércio entre Mercosul e Egito, de 2010, e no preâmbulo e no artigo 267.1 do Acordo de Livre Comércio entre UE, Colômbia e Peru, de 2012.

Por último, ainda nessa categoria, deve se mencionar o caso da Organização Mundial do Comércio (OMC). O preâmbulo do Acordo Constitutivo da OMC, de 1995, reconhece expressamente que a expansão da produção e o comércio de bens e serviços deve ocorrer “possibilitando, enquanto isso, o uso ótimo dos recursos mundiais de acordo com o objetivo do desenvolvimento sustentável”.

Assim, como foi possível perceber, diversas dimensões da sustentabilidade são objeto de documentos internacionais e o desenvolvimento sustentável, por si só, é visto como um princípio e um objetivo a ser perseguido pela comunidade internacional.

Entretanto, a maior parte dessas declarações e acordos internacionais não prevê sanções caso suas disposições sejam desobedecidas. Embora configure claro dever moral dos Estados, o que acontece quando estes deixam de honrar a sua obrigação de respeitar o princípio do desenvolvimento sustentável?

Para responder essa pergunta, é preciso analisar a – infelizmente pouca – jurisprudência de tribunais internacionais nessa matéria. Nos limitaremos a apenas dois casos.

No primeiro, conhecido como caso Gabcikovo-Nagymaros, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) adotou o desenvolvimento sustentável como base para sua sentença de 1997. Nesta, foi registrado que o homem não parou, ao longo das eras, de intervir na natureza, frequentemente sem considerar os efeitos disso, mas que, com as novas perspectivas apresentadas pela ciência quanto aos riscos que essas intervenções a um ritmo impensado representariam para a humanidade, os Estados precisam agora começar a considerar as normas de proteção ambiental enunciadas em um grande número de instrumentos.

Para a CIJ a ideia de desenvolvimento sustentável deve servir para conciliar desenvolvimento econômico e proteção ambiental e, neste julgamento em particular, não serviu apenas como um conceito abstrato, mas como um princípio de valor normativo indissociável do direito internacional moderno.

O outro exemplo que vale a pena mencionar é o do caso “shrimp-turtle”, no qual o Órgão de Apelação da OMC afirmou, em sua decisão de 1998, que a linguagem utilizada no preâmbulo do acordo constitutivo, estabelecendo o desenvolvimento sustentável como objetivo, reflete a intenção dos negociadores e deve acrescentar “cor, textura e contraste” à leitura dos demais acordos daquela organização. Fez referência, ainda, ao artigo XX do GATT – General Agreement on Tariffs and Trade, acordo de 1947 incorporado pela OMC – que lista, entre as exceções ao dever geral dos países membros de permitir o livre comércio, algumas medidas relacionadas à sustentabilidade, como aquelas destinadas à proteção da vida e saúde humanas e à conservação de recursos naturais não renováveis. Segundo o Órgão, esse artigo “deve ser interpretado à luz das preocupações contemporâneas da comunidade das nações sobre a proteção e conservação do meio ambiente”.

Caso se consolide como tendência o entendimento pelos tribunais internacionais de que o princípio do desenvolvimento sustentável deve ser respeitado, práticas dos Estados contrárias a esse princípio poderiam ser passíveis de litígio nessas jurisdições. Esse entendimento, inclusive, pode vir a se firmar não apenas por se constatar que desenvolvimento sustentável está consagrado em convenções internacionais – ou, ao menos, por considerá-lo como “princípio geral do direito reconhecido pelas nações civilizadas”, na terminologia do artigo 38 do Estatuto da CIJ –, mas pela via dos costumes, uma vez que a observância reiterada pelos Estados das práticas relacionadas à sustentabilidade e a consciência de sua obrigatoriedade (opinio juris) podem fazer com que essas se cristalizem em regras de natureza costumeira.

Uma evolução nesse sentido permitiria aumentar o poder coercitivo do Direito Internacional da Sustentabilidade, mesmo quando não existir sanção pelo descumprimento das diretrizes a ele relacionadas – ou seja, mesmo que estas, por seu caráter muitas vezes não vinculante, configurem aquilo que alguns denominam “soft law”.

Portanto, a consciência cada vez maior da grandiosidade de nossos desafios socioambientais tem levado ao surgimento de um sistema com objeto, conceitos, normas, instituições e princípios próprios, voltado a reverter o grave quadro atual. Para que o Direito Internacional da Sustentabilidade se consolide há, ainda, um longo caminho pela frente. Um caminho que precisamos percorrer, entretanto, e rapidamente, se quisermos garantir nosso próprio futuro.
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Eduardo Felipe Matias, sócio de Nogueira, Elias, Laskowski e Matias Advogados, é Doutor em Direito Internacional pela USP e autor dos livros A Humanidade contra as cordas: a luta da sociedade global pela sustentabilidade (ao qual se dedica este blog) e A humanidade e suas fronteiras: do Estado soberano à sociedade global, vencedor do Prêmio Jabuti.

Foto: ejaugsburg/Public Domain

Fonte: Planeta Sustentável