Os cientistas acreditaram por muito tempo que os ruídos subaquáticos produzidos pelo homem – oriundos de motores, sonares, testes de armas e de ferramentas industriais como canhões de ar, utilizados na exploração de petróleo e gás – provocavam surdez nas baleias e outros mamíferos marinhos. A Marinha estima que os fortes barulhos provocados apenas pelos seus dispositivos de escuta subaquáticos, principalmente os sonares, resultam em perda auditiva temporária ou permanente em mais de 250 mil criaturas marinhas todos os anos, um número que está aumentando.
Agora, os cientistas descobriram que as baleias podem diminuir a sensibilidade da audição para proteger os ouvidos de ruídos altos. Os seres humanos costumam fazer isso com os dedos indicadores; os cientistas ainda não descobriram como as baleias o fazem, mas identificaram um primeiro indício desse comportamento.
“É o equivalente a colocar um protetor nos ouvidos quando um jato está sobrevoando”, disse Paul E. Nachtigall, biólogo marinho da Universidade do Havaí que liderou a equipe que fez a descoberta. “É como um controle de volume.”
A descoberta, mesmo que preliminar, já está aumentando as expectativas de desenvolver sinais de advertência que alertem baleias, golfinhos e outros mamíferos marinhos para perigos auditivos.
Peter Madsen, professor de biologia marinha da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, disse aplaudir o time havaiano por sua “pesquisa elegante” e a promessa de formas inovadoras de “abordar alguns dos problemas do barulho”. Contudo, pediu cautela quanto a permitir que a descoberta diminua iniciativas de reduzir o barulho no oceano em todo o mundo, as quais ajudariam mais diretamente os mamíferos marinhos que estão sendo perturbados.
A ameaça de ruído surge por conta das propriedades básicas de água do mar. Normalmente, a luz pode viajar por centenas de metros pela água do oceano antes de se extinguir. Mas o som pode viajar por centenas de quilômetros.
Os oceanos do mundo foram ficando mais barulhentos com a expansão das atividades submarinas das empresas e dos governos. Os pesquisadores já associaram a crescente balbúrdia à surdez, deterioração de tecidos dos animais, encalhes em massa e desorientação de criaturas que dependem da audição para se guiar, encontrar comida e cuidar dos filhotes.
O perigo virou um joguete político. Em 2008, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos julgou uma ação movida pelo Conselho de Defesa de Recursos Nacionais contra a Marinha sobre o ruído produzido no oceano; o tribunal determinou que os navios de guerra têm direito de testar os sistemas de sonar de submarinos de caça. Contundo, os ambientalistas viram uma vitória tácita mesmo no fato de o mais alto tribunal da nação ter chegado a considerar a saúde dos mamíferos marinhos em um debate sobre a segurança nacional.
O mais recente acontecimento ligado ao assunto ocorreu em um centro de pesquisa perto de Oahu – localizado em uma ilha onde as imagens de abertura de “A Ilha dos Birutas” foram filmadas.
Lá há cientistas estudando o modo como os golfinhos e as baleias dentadas ouvem. Na natureza, os mamíferos emitem sons e escutam o retorno de ecos em um comportamento sensorial conhecido como ecolocalização. Em cativeiro, os cientistas ensinaram as criaturas a usar eletrodos de sucção que revelaram os padrões das ondas cerebrais implicadas na audição.
A descoberta foi se revelando em etapas. Primeiro, Nachtigall e sua equipe descobriram que os animais conseguem ajustar a audição como uma forma de reação aos altos sons da ecolocalização produzidos por eles mesmos, que são principalmente estalidos agudos. Os cientistas então se perguntaram se os animais também poderiam proteger os ouvidos das explosões que surgem.
A equipe se concentrou em uma falsa baleia assassina chamada Kina e procurou ensinar a ela um comportamento condicionado semelhante à forma como Pavlov ensinou os cães a salivarem quando escutassem um sino.
Primeiro, os cientistas tocaram um som suave repetidamente. Em seguida, acompanharam esse pulso delicado com um som alto. Depois de alguns testes, o sinal de alerta, por si só, fez com que Kina diminuísse a sensibilidade da audição.
“Isso é promissor como uma forma de mitigar os efeitos de sons altos”, disse Nachtigall, diretor-fundador do Programa de Pesquisa de Mamíferos Marinhos da Universidade do Havaí. “As pessoas normalmente ficam muito animadas com isso.”
Em maio, Nachtigall e seus colegas apresentaram suas descobertas a cientistas e grupos especializados em acústica reunidos em Hong Kong, incluindo a Sociedade Americana de Acústica. A equipe citou a proteção contra o ensurdecimento como um caminho possível para ajudar os mamíferos marinhos a lidarem com explosões barulhentas de sonares navais, pistolas de ar civis e outros equipamentos.
No futuro, a equipe pretende expandir a pesquisa para outras espécies que vivem em cativeiro e, finalmente, para os animais em estado selvagem.
“Temos um problema no mundo”, disse Nachtigall sobre os ruídos disparados no oceano. “E nós acreditamos que os animais podem aprender a reagir a ele muito rapidamente.”
Cientistas que não estiveram envolvidos com a pesquisa com os mamíferos a consideraram importante.
“É um grande acontecimento”, disse Vincent M. Janik, respeitado biólogo marinho da Universidade de St. Andrews, na Escócia. Por e-mail, ele disse que a pesquisa revelou uma habilidade rara entre as criaturas do planeta.
Carl Safina, presidente do Instituto Blue Ocean, um grupo preservacionista de Cold Spring Harbor, Nova York, considera a descoberta uma possível maneira de observar o que os mamíferos marinhos já fazem em algumas ocasiões para proteger a sua audição.
“Eu às vezes me perguntava por que esses sons de alta intensidade não causam problemas sempre”, disse ele em uma entrevista. “Talvez seja isso; assim que os animais ouvem algo muito alto, eles conseguem ajustar a audição – modular o volume e se proteger.”
Os cientistas dizem que a audição extraordinária dos mamíferos marinhos evoluiu de modo a compensar a má visibilidade sob as ondas, fazendo com que eles se beneficiem das qualidades únicas da água do mar. O som viaja cinco vezes mais rápido na água do que no ar e sofre uma diminuição muito menor.
A cabeça das baleias e dos golfinhos é um labirinto de câmaras de ressonância e lentes acústicas que proporciona aos animais não só uma audição extraordinária, mas também vozes complexas. As canções distintas das baleias jubarte parecem ser cantadas apenas por machos em busca de fêmeas.
Nas últimas décadas, os cientistas associaram a cacofonia humana à redução das vocalizações dos mamíferos, o que sugere um declínio na alimentação e reprodução. E o problema está prestes a piorar: em maio, a Marinha divulgou notas preliminares sobre o impacto ambiental (provenientes de operações no oceano Atlântico e Pacífico) que indicam que as expansões planejadas podem vir a aumentar as perdas auditivas entre os mamíferos marinhos para mais de um milhão a cada ano.
Recentemente, Zak Smith, advogado do Conselho de Defesa de Recursos Nacionais chamou as novas estimativas de “estarrecedoras”.
Para Nachtigall, saber se os níveis de proteção contra a surdez encontrados na baleia Kina podem ser elevados é uma questão científica. A equipe pretende estudar a reação auditiva em espécies como os golfinhos nariz-de-garrafa e as baleias beluga antes de fazer experiências junto a populações que vivem em meio natural.
O grande obstáculo político é a obtenção de financiamento, disse ele. O apoio federal para a pesquisa de mamíferos marinhos diminuiu nos últimos anos, e a iniciativa privada está apenas começando a demostrar interesse pela descoberta.
“Eu estou arrecadando dinheiro onde posso”, observou ele. Nachtigall diz que a pesquisa foi cara porque os mamíferos marinhos necessitam de cuidados extremos.
Para ele, porém, o estudo foi revelador e gratificante. “Estamos apenas começando a entender os processos sonoros ligados às baleias”, disse Nachtigall.
Descoberta colabora com a discussão sobre como reduzir o ruído submarino
Em setembro de 2002, mais de uma dúzia de baleias-bicudas encalharam nas Ilhas Canárias. Equipes de resgate tentaram levar água aos animais encalhados e mantê-los frescos. Ainda assim, todos morreram.
Perto dali, as forças navais da OTAN estavam testando dispositivos sonares para detectar submarinos inimigos, e a divulgação das mortes acabou por reforçar as suspeitas de uma ligação entre o sofrimento das baleias e os altos ruídos emitidos no oceano.
A teoria diz que os mamíferos tentam escapar do barulho disparado nas profundezas do mar, correm para a superfície e, em alguns casos, acabam encalhando. (As baleias-bicudas parecem golfinhos enormes; não se sabe muito a respeito delas pelo fato de mergulharem até profundidades extremas e conseguirem ficar debaixo das ondas durante mais de uma hora antes de virem à superfície para respirar.)
Por décadas, os ambientalistas têm trabalhado para reduzir o barulho submarino – geralmente com pouco sucesso, dada a crescente industrialização e militarização dos oceanos. Eles entraram com ações na justiça e empreenderam campanhas de redação de cartas, incluindo uma recente petição que pede que a Marinha abandone o teste de equipamentos de som submarinos.
A descoberta de que as baleias podem diminuir a sensibilidade da audição para proteger os ouvidos dos ruídos altos, feita pelos biólogos do Havaí, acrescenta uma outra dimensão ao debate.
Michael Jasny, analista sênior de políticas do Conselho de Defesa de Recursos Nacionais , que tem sede em Nova York, considera a pesquisa havaiana fascinante. Ele disse esperar que ela tenha eficácia na proteção da audição das baleias frente a ameaças como os sonares militares.
Ele, porém, caracterizou a descoberta como um trabalho em andamento que colocou muitas perguntas ainda sem resposta.
“É necessário pesquisar muito mais”, disse ele em entrevista. “O estudo poderia ser replicado na natureza? Essa é uma pergunta extremamente importante.”
Para Jasny, mesmo que as baleias possam aprender a dessensibilizar a audição para fins de prevenção, isso abordaria apenas uma parte relativamente pequena do problema do barulho nos oceanos.
“É importante entender que o método proposto tem limites”, disse ele. “Não se trata de uma solução mágica.”
Fonte: Ambiente Brasil