Muito além do Feijão com Arroz


Chefs acordaram para a conexão entre gastronomia e biodiversidade.

 

           

Cada vez mais requintada, a alta gastronomia tem fome de novos sabores. Quer experimentar texturas, descobrir aromas e propor associações ao paladar. Em busca de receitas inovadoras, não hesita em revolver segredos culinários ancestrais. Tratando-se do Brasil, um dos países campeões de biodiversidade no mundo, nada como se embrenhar nas raízes regionais e decifrar as especiarias dos conhecimentos tradicionais para abrir horizontes.

Como muitos chefs, o paulista Alex Atala, proprietário dos celebrados restaurantes D.O.M. e Dalva e Dito, sabe que a floresta é uma mesa farta. Há iguarias escondidas no meio do mato ou no quintal das comunidades indígenas. Basta apurar o faro para descobrir ingredientes com maior potencial gastronômico, estruturar cadeias para viabilizá-los comercialmente – como a castanha-do-pará ou o açaí – e saborear os frutos da iniciativa: “O uso racional e científico dos recursos naturais brasileiros aponta para um melhor comer, um melhor viver e uma natureza melhor”, diz Atala.

Disseminar alimentos dos biomas nacionais, difundindo hábitos alimentares regionais por todo o Brasil, e incentivar os pequenos produtores rurais são as metas fundamentais do recém-constituído Instituto Atá, uma parceria de ambientalistas, antropólogos, publicitários, gastrônomos e chefs como Atala.

O objetivo é rever a relação do homem com o alimento, de forma abrangente. “Precisamos aproximar o saber do comer, o comer do cozinhar, o cozinhar do produzir e o produzir da natureza. Trata-se de agir em toda a cadeia de valor, com o propósito de fortalecer os territórios a partir de sua biodiversidade, da agrodiversidade e da sociodiversidade, para garantir alimento bom para todos e para o ambiente”, prega Atala. “O Ata está a serviço disso.”

Entre as metas do grupo, assinala um de seus integrantes, o diretor da organização Amigos da Terra-Amazônia Brasileira e gastrônomo convicto Roberto Smeradi, está o resgate da imensa variedade de feijões encontrada no Brasil. Seja feijão fradinho, seja de corda, mulatinho, jalo, branco ou bolinha, há uma infinidade de tipos usados de norte a sul em pratos tão variados quanto o baião-de-dois cearense ou o acarajé baiano. No entanto, “o brasileiro está deixando de lado esta riqueza e se limitando a uma ou duas espécies”, lamenta Smeraldi.

Outra frente de trabalho do Instituto Atá é fazer um inventário dos tipos de cogumelos comestíveis encontrados na Mata Atlântica, uma vez que a arte culinária brasileira “só dispõe, no momento, de quatro ou cinco tipos” – entre os quais o shimeji e o shiitake, trazidos do Oriente. “A grande diversidade de cogumelos neste bioma é um desafio para a ciência e para os gastrônomos. Sabemos que só no Paraná são encontradas mais de 250 espécies nativas”, diz Smeraldi.

O mesmo acontece em relação ao mel de abelhas nativas e à baunilha do Cerrado, igualmente com vasto potencial gastronômico. “Como profissional de cozinha, surpreendi-me ao conhecer uma baunilha em estado selvagem”, diz Atala. Um dos sonhos do Instituto Atá é a domesticação da espécie e a estruturação de um consórcio de famílias nas áreas de Cerrado, para gerar complemento de receita a comunidades carentes e “um produto de alta qualidade, com DNA brasileiro, para as mesas do mundo”, projeta o chef paulista.

Ingrediente genuinamente brasileiro, mas ainda sem legislação, logo, não comercializado, “a regulamentação do comércio do mel das abelhas mansas é um dos projetos mais importantes do Instituto”, afirma Atala, pois, “além de seu uso culinário possível, ele tem características medicinais. A utilização pode beneficiar os gourmets e profissionais de cozinha, gerar renda e ampliar os benefícios ao meio ambiente, uma vez que as abelhas são indicadores de biomas saudáveis” – como, por exemplo, o mel das abelhas do Xingu produzido pela Atix, a Associação Terra Indígena Xingu.

Culinária indígena

Outra proposta do Instituto Atá é investir na comercialização da pimenta em pó baniwa jiquitaia. Nativa da bacia do Alto Rio Negro e preparada a partir de uma grande variedade de cores e tamanhos de frutos da espécie Capsicum florescens, da família do tabasco, a jiquitaia é um segredo transmitido de mãe para filha entre as índias baniwa, usada para acompanhar, em porções generosas, o biju de tapioca servido com peixe na região de São Gabriel da Cachoeira, no noroeste do Amazonas.

Patrimônio de 15 mil índios de 200 comunidades no Brasil, na Venezuela e na Colômbia, a jiquitaia – em tupi, “sal com pimenta” – resulta da secagem ao sol, durante cinco dias, de diversos frutos, que, em seguida, vão para o fogão, são pilados e moídos até virar pó. Algumas, feitas a partir da koonihtako (pimenta-bico-decoró-coró), apresentam aroma defumado marcante e lembram a pimenta calabresa. Outras, produzidas com frutos maduros de dzakoite (pimenta-da-caatinga), com ou sem sementes, podem substituir o peperoncino italiano numa macarronada, dizem os especialistas.

Comercializada pela Casa da Pimenta Baniwa, da comunidade Tunuí-Cachoeira, no Rio Içana, com o apoio do Instituto Socioambiental, a jiquitaia está entrando no mercado em Brasília, Manaus e São Paulo, onde é vendida no Mercadinho Dalva e Dito. A propósito, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tombou o “Sistema Agrícola do Rio Negro” como patrimônio cultural brasileiro.

Outras propostas interessantes são a entomofagia dos insetos brasileiros e a oleodiversidade. Já que a ONU vem estimulando o consumo de proteína de insetos como alternativa para o impasse alimentar que ameaça uma população de 7 bilhões de pessoas (ver PLANETA 483), chefs de todo o mundo deram as mãos para inventar receitas.

No restaurante Billy Kwong, em Sydney, Austrália, o gafanhoto sobre pastel frito de camarão é considerado iguaria. Na Cidade do México, servem-se canapés com ovas de formiga no Pujol, enquanto o cardápio do Paxia sugere um “peru com percevejos”. Em Copenhague, Dinamarca, René Redzepi, renomado chef do Noma, recorre a formigas para incrementar seus pratos. Em São Paulo, onde as içás, fritas em gordura de porco, são tradicionais em cidades do Vale do Paraíba, Alex Atala oferece, no D.O.M, receitas que incorporam saúvas da Amazônia – portadoras de notas cítricas –, apreciadas pelos índios do Alto Rio Negro.

Em matéria de diversidade, o Brasil é um verdadeiro empório. Prontos para desbancar o tradicional azeite de oliva, um sem-número de óleos extraídos de frutas e sementes sugere uma nova gama de propostas à mesa. Na Amazônia, são conhecidos mais de 100 tipos de plantas oleoginosas. No Centro-Oeste, o óleo de pequi e o de babaçu vão para as panelas. No Nordeste, o dendê, e também o óleo de licuri e de coco são apreciados. Em Minas Gerais, o uso culinário do óleo de macaúba, empregado na indústria cosmética, já engatinha. No Espírito Santo, o óleo de macadâmia, que dá um bom azeite, está em produção. Sem falar na gordura do cupuaçu, excelente para fritar carnes, impregnandoas do cheiro característico da fruta; do óleo de açaí, bom para flambar alimentos, aos quais empresta seu perfume adocicado; ou do da castanha-do-pará, ótimo para temperar saladas.

Tesouros da caatinga

A proposta do Instituto Atá não é única no país. Surgido há uma década, o programa Caras do Brasil, do Grupo Pão de Açúcar, garimpa cooperativas e pequenos produtores regionais segundo critérios de sustentabilidade – entre eles, o manejo sustentável, a eliminação do atravessador e o repúdio ao trabalho infantil e escravo. De acordo com Daryalva Bacelar, gerente de Responsabilidade Social do Instituto Pão de Açúcar, o grupo dispõe de 14 fornecedores da Amazônia, do Cerrado e da Caatinga que comercializam seus produtos por meio da rede varejista, como o mel dos índios do Xingu, a castanha de baru e balas artesanais expostas com destaque em gôndolas especiais.

Explicando que “o programa visa fortalecer redes de fornecedores, oferecendo condições comerciais especiais, respeitando a capacidade produtiva, as marcas e os preços, estimulando a diversificação dos canais de venda, dentro dos princípios do comércio ético e solidário”, Daryalva informa que o Pão de Açúcar explora três recursos para chegar aos produtores: o site “Caras do Brasil”, no qual os interessados podem se cadastrar; uma parceria com o Sebrae, que promove rodadas de negócios e feiras de artesanato periodicamente; e o cadastro nacional de cooperativas do Ministério do Desenvolvimento Social.

Foi dessa forma que se consolidou a aliança entre o Pão de Açúcar e a Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá (Coopercuc), criada em 2004, na Bahia. Hoje, a Coopercuc é constituída de 450 famílias de coletores e processadores de umbu, uma pequena e deliciosa fruta esverdeada da Caatinga, rica em vitamina C, que dá no umbuzeiro – a “árvore sagrada do sertão”, segundo o escritor Euclides da Cunha.

Para estabelecer essa aliança, foi preciso driblar “as dificuldades de logística de transporte, a tributação sobre produtos da agricultura familiar, a falta de capital de giro, as questões sanitárias e a desconfiança das redes varejistas, que não querem se arriscar e encomendam pequenas quantidades”, explica Jussara Dantas de Souza, gerente-comercial da Coopercuc. As 18 comunidades produtoras localizadas no sertão baiano, compostas em 70% por mulheres, produzem 162 toneladas de umbu e maracujá-da-caatinga por ano e oferecem uma gama de 14 produtos sob a marca Gravetero. Entre eles estão a compota de umbu, o doce de umbu cremoso, o Nego Bom de Umbu e a geleia de maracujá-da-caatinga. Durante os três meses de safra, cada família recebe um salário médio de R$ 2 mil.

A comercialização dos doces da caatinga, hoje presentes nos mercados mais sofisticados do país e exportados para a Europa, representa, segundo Jussara, “uma maneira de preservar os umbuzeiros e, com eles, a própria Caatinga, um bioma muito vulnerável, ameaçado de desertificação e historicamente caracterizado por profundas desigualdades socioeconômicas”. Um dos princípios da Coopercuc é promover a conservação e o uso sustentável do ambiente,, de maneira a “garantir a sustentabilidade das famílias no sertão”.

Tendo em vista a recuperação das áreas degradas, a Cooperativa desenvolveu um programa de produção e distribuição de mudas nativas e frutíferas. Ao todo, foram construídos quatro viveiros e produzidas quatro mil mudas em parceria com a associação de patrulheiros ambientais Guardiões da Caatinga, com a Embrapa Semiárido e o apoio do KMB (Movimento dos Homens Católicos), da diocese de Lins, na Áustria.

“Este é o caminho: acordar para as questões ambientais e assumir a responsabilidade em preservar o meio ambiente”, ressalta Jussara. Oferecer a biodiversidade brasileira generosamente servida num prato.

Fonte: http://revistaplaneta.terra.com.br/

Laísa Mangelli 

Feijão transgênico em “banho maria”


Feijão transgênico liberado há dois anos está em “banho-maria”. Entrevista especial com José Maria Guzman Ferraz

 

“O caso do feijão é emblemático para ressaltar a irresponsabilidade de liberações comerciais sem o devido cuidado e sem observações mínimas do princípio da precaução, colocando em risco a saúde da população e o meio ambiente”, afirma o agrônomo.

 

 
Foto: terradedireitos.org.br

feijão transgênico Embrapa 5.1, liberado no Brasil pelaComissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBioem 2011, está em “‘banho-maria’, pois apareceram vários problemas, os quais já tinham sido apontados pelos avaliadores mais críticos, que são chamados de ‘pessoas retrógradas que impedem o progresso da ciência’, quando na fase destas liberações”, informa José Maria Guzman Ferraz, em entrevista à IHU On-Line por e-mail.

 

De acordo com o agrônomo, embora tenha sido liberado, ofeijão transgênico não foi plantado comercialmente, “porque na fase de multiplicação de sementes ele apresentou problemas que levaram à paralisação da produção”. Ferrazlembra que, à época da liberação, os pareceres contrários “recomendavam maiores estudos e apontavam todas estas possibilidades, agora relatadas, mas que foram desconsideradas, e na votação venceu a imprudência e o descaso com a saúde pública”.

José Maria Guzman Ferraz comenta ainda que o “exemplo mais famoso” de culturas transgênicas aprovadas e depois retiradas do mercado é o do “tomate Flavr/Savr, geneticamente modificado para desacelerar seu processo de amadurecimento e, assim, impedi-lo de amolecimento, que revelou ser altamente instável na planta e foi retirado do mercado”. Segundo ele, “a forma apressada como são conduzidos os ensaios e forçadas as liberações comerciais antes de estarem muito bem fundamentadas cientificamente colocam em risco não só a população, mas a própria credibilidade na tecnologia”.

Futuramente, a Embrapa pretende comercializar uma variedade transgênica de alface com a justificativa de que o produto aumentará a quantidade de nutrientes para suprir a carência nutricional de ácido fólico na alimentação. A proposta, avalia o agrônomo, “é interessante, mas imagine se tivermos que produzir um transgênico para cada necessidade de nutriente”. Ele lembra que “existem diversos alimentos, como o espinafre e os brócolis, que já estão na natureza e possuem os nutrientes necessários para suprir o acido fólico, além de algumas plantas, consideradas ‘plantas invasoras’, conhecidas como plantas alimentícias não convencionais – PANC, que crescem espontaneamente no meio de outras lavouras e são ricas em ácido fólico”.

José Maria Gusman Ferraz é mestre em Agronomia pela Universidade de São Paulo – USP e doutor em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Cursou pós-doutorado em Agroecologia pela Universidade de Córdoba – UCO, Espanha. Atualmente é professor do curso de mestrado em Agroecologia e Desenvolvimento Rural da UFSCar e professor convidado da Universidade Estadual de Campinas.

Confira a entrevista.

 

 
Foto: mercadoetico.com.br
 

IHU On-Line – Em que consistem as plantas transgênicas?

 

José Maria Guzman Ferraz – Quase 100% das plantas transgênicas liberadas no mundo todo foram geneticamente modificadas para sintetizar uma proteína com propriedades inseticidas e/ou responsável pela tolerância da planta a determinado herbicida; é inserido na planta, através da tecnologia de engenharia genética, o DNA (acido desoxirribonucleico) de organismos doadores, que vão se incorporar na planta e passam a produzir as características desejadas, por exemplo, a tolerância ao herbicida.

No caso do feijão Embrapa 5.1, a planta foi geneticamente modificada para sintetizar uma molécula de RNA (dsRNA) (ácido ribonucleico), responsável, nesse caso, por fenômenos de silenciamento de genes. Essa molécula de material genético será em seguida quebrada e transformada em pequenos RNAs (siRNA), pela maquinaria molecular da célula da planta, que irá interferir com genes do vírus, impedindo sua multiplicação. A proposta é de que eles vão agir, portanto, no silenciamento dos genes dos vírus que infectam a planta, não permitindo que se multipliquem.

Mas estas moléculas de RNA (siRNA) podem ser absorvidas por outros organismos, inclusive o homem, via intradérmica, oral ou por inalação, e podem circular no organismo e interferir na expressão dos genes. Recentemente, uma pesquisa identificou moléculas destes RNAs (miRNA) de plantas na corrente sanguínea de mamíferos que comeram plantas com estes RNAs, e foi observada alteração na expressão de gene no fígado de ratos. Provavelmente este foi o fator que causou alteração no fígado de ratos, na avaliação do feijão transgênico da Embrapa, e que não foi considerado em sua liberação, embora tenha sido alertado pelo avaliador quanto à exigência de mais estudos. Portanto apresentam riscos que devem ser avaliados com muito cuidado.

IHU On-Line – Qual é a atual situação do feijão transgênico da Embrapa?

José Maria Guzman Ferraz – O feijão transgênico está em “banho-maria”, pois apareceram vários problemas, os quaisjá tinham sido apontados pelos avaliadores mais críticos, que são chamados de “pessoas retrógradas que impedem o progresso da ciência”, quando na fase destas liberações. A forma como têm sido feitos e liberados estes transgênicos se caracteriza como uma tecnociência que não respeita os mínimos preceitos do princípio da precaução, numa clara fé sem críticas a esta tecnologia.

O exemplo mais famoso desses eventos retirados do mercado diz respeito ao tomate Flavr/Savr, geneticamente modificado para desacelerar seu processo de amadurecimento e, assim, impedi-lo de amolecimento, que revelou ser altamente instável na planta e foi retirado do mercado.

IHU On-Line – Quando e por quais razões a Embrapa passou a recomendar a paralisação do plantio de feijão transgênico (feijão 5.1), menos de três anos depois da aprovação da comercialização desse tipo de feijão? A que atribui essa mudança de postura em relação ao feijão transgênico?

José Maria Guzman Ferraz – A Embrapa alega, para a não liberação do feijão transgênico, um fato que gerou inclusive uma nota técnica da empresa alertando que outra doença do feijoeiro seria mascarada pelo feijão transgênico, que é a infecção pelo vírus Carlavirus, também transmitido pela mosca-branca. Portanto, volta-se à necessidade de controlar o transmissor de ambos, que é a mosca-branca. Este “mascaramento” pode ser, na verdade, uma consequência do próprio processo de transgenia que aumentaria a eficácia deste outro vírus. A Embrapa volta a recomendar o controle da mosca-branca com controle químico e manejo da cultura, como era feito anteriormente.

Mas, além desse fato, acreditamos que a alta instabilidade do feijão transgênico seja um outro grande problema, ou seja, ele pode perder a característica de resistir ao vírus do mosaico dourado – VMDF após algumas gerações.

Outro fato alertado na avaliação antes da liberação comercial é que vários trabalhos internacionais apontam para a possibilidade muito forte de efeitos tóxicos e genotóxicos em células de mamíferos alimentados com plantas que foram produzidas por esta tecnologia. Esses efeitos resultaram em sintomas não explicados, no caso do feijão da Embrapa, em aumento do peso do fígado e diminuição do peso dos rins nos ratos testados. Todos esses fatores podem ter pesado para a não liberação comercial do feijão.

 

  "Este “mascaramento” pode ser uma consequência do próprio processo de transgenia que aumentaria a eficácia deste outro vírus"

 

IHU On-Line – O feijão transgênico não chegou a ser comercializado?

José Maria Guzman Ferraz – O feijão não foi plantado comercialmente, porque na fase de multiplicação de sementes ele apresentou problemas que levaram à paralisação da produção.

IHU On-Line – Em que regiões do Brasil o feijão transgênico foi cultivado a fim de serem realizados os testes?

José Maria Guzman Ferraz – Na fase de testes, antes da aprovação comercial, ele foi plantado em várias regiões, apresentando resultados diferentes, justamente em função da instabilidade do modelo de transgenia usado na sua construção e em função dos diferentes ambientes. Fatos que foram alertados no processo de avaliação da liberação comercial.

IHU On-Line – O feijão e o feijão transgênico foram infectados pelo vírus do mosaico dourado? Em que consiste esse vírus e como se dá a contaminação?

José Maria Guzman Ferraz – O vírus do mosaico dourado é uma doença causada pelo vírus de mesmo nome, que acomete o feijoeiro e várias outras culturas, causando amarelecimento e morte das folhas das plantas pela multiplicação acelerada do vírus no tecido vegetal, resultando na perda considerável da produtividade. O vírus da doença do feijoeiro é transmitido pelo inseto Bemisia tabaci, conhecido como mosca-branca, portanto deve-se controlar a mosca para evitar a transmissão da doença.

O controle da mosca e, consequentemente, da doença torna-se difícil quando a cultura do feijão é produzida em enormes monocultivos de feijão e plantios sucessivos, ou com outras culturas que também são atacadas pelo vírus.

IHU On-Line – Com a sugestão de que o feijão transgênico não seja comercializado, há como distinguir entre o plantio de feijão e o de feijão transgênico? Mesmo com o alerta da Embrapa, o feijão transgênico poderá ser plantado?

José Maria Guzman Ferraz – A aparência do feijão transgênico e do convencional é a mesma. Caso seja comercializado um dia, não tem como distinguir visualmente, a não ser através de testes bioquímicos.

E como o feijão é vendido a granel em muitas localidades, seria impossível detectar, mesmo o empacotado, a não ser que seja revogada a lei de não necessidade de rotulagem, que tramita agora no Congresso. E as consequências sobre a saúde não poderiam ser estabelecidas, pois não seria possível rastrear e estabelecer a relação causa-efeito. Este, inclusive, é um dos motivos de esta legislação estar sendo implementada.

IHU On-Line – Á época da liberação do feijão transgênico, a CTNBio divulgou um parecer afirmando que “o feijão Embrapa 5.1 é substancialmente equivalente ao feijão convencional, sendo seu consumo seguro para a saúde humana e animal. No tocante ao meio ambiente, concluiu a CTNBio que o cultivo do feijão Embrapa 5.1 não é potencialmente causador de significativa degradação do meio ambiente, guardando com a biota relação idêntica à do feijão convencional (Parecer Técnico nº 3024/2011)”. Era possível vislumbrar possíveis impactos e complicações em relação a esse feijão na ocasião da aprovação da sua comercialização, em 2011?

José Maria Guzman Ferraz – Sim. Os pareceres contrários à liberação, que recomendavam maiores estudos, apontavam todas estas possibilidades, agora relatadas, mas que foram desconsideradas, e na votação venceu a imprudência e o descaso com a saúde pública.

IHU On-Line – Outro ponto defendido pelos técnicos da Embrapa na ocasião da liberação do feijão transgênico foi o de que ele poderia ser consumido pela população sem danos ao organismo. Há novas informações e estudos sobre possíveis danos à saúde dos consumidores?

José Maria Guzman Ferraz – Meu parecer colocava em destaque que o feijão da Embrapa tinha levado ao aumento do peso do fígado e à diminuição do peso dos rins nos ratos testados, pelos dados apresentados pela própria empresa.

IHU On-Line – Que novos estudos estão sendo feitos com o feijão transgênico?

José Maria Guzman Ferraz – O passo seguinte seria introduzir o gene de resistência a herbicida no feijão, mas como a tecnologia apresenta problemas, isto está seguramente em avaliação.

 

"Acreditamos que outro grande problema seja o fato da alta instabilidade do feijão transgênico, ou seja, ele pode perder a característica de resistir ao vírus do mosaico dourado"

 

IHU On-Line – Há notícias de que futuramente a Embrapa quer comercializar alface transgênico. O senhor tem informações sobre esse assunto? Quais são os argumentos para se produzir alface geneticamente modificada? Tem informações sobre os estudos nessa área?

José Maria Guzman Ferraz – A Embrapa está com estudos aprovados pela CTNBio de uma variedade transgênica de alface, que segundo a empresa tem previsão de chegar ao mercado em 2021, com proposta de biofortificação, ou seja, aumento de determinados nutrientes.

A proposta é de suprir a carência nutricional de ácido fólico na alimentação. A vitamina tem a função de, entre outras coisas, evitar doenças relacionadas à malformação do tubo neural no período da gestação, evitando problemas como malformações cerebrais, espinha bífida, que resulta da formação incompleta da medula espinhal, e lábio leporino, em que a criança nasce com uma abertura no lábio.

A proposta é interessante, mas imagine se tivermos que produzir um transgênico para cada necessidade de nutriente. Existem diversos alimentos, como o espinafre e os brócolis, que já estão na natureza e possuem os nutrientes necessários para suprir o acido fólico, além de algumas plantas, consideradas “plantas invasoras”, conhecidas comoplantas alimentícias não convencionais – PANC, que crescem espontaneamente no meio de outras lavouras e são ricas em ácido fólico e em outros nutrientes, que estão adaptadas às diferentes regiões, não precisam de cuidados específicos durante o plantio, não criam dependência tecnológica e não envolvem riscos desconhecidos.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

José Maria Guzman Ferraz – O caso do feijão é emblemático para ressaltar a irresponsabilidade de liberações comerciais sem o devido cuidado e sem observações mínimas do princípio da precaução, colocando em risco a saúde da população e o meio ambiente.

A forma apressada como são conduzidos os ensaios e forçadas as liberações comerciais antes de estarem muito bem fundamentadas cientificamente colocam em risco não só a população, mas a própria credibilidade na tecnologia. Em muitos casos, essa pressa não é necessária, pois se está agindo no efeito e não na causa do desequilíbrio que leva a estes surtos de pragas e doenças.

Neste caso específico, o risco decorrente desta tecnologia que gerou o feijão Embrapa 5.1 não é necessário. O que causa esta alta incidência da doença é o “modelo de produção dominante, pois o inseto vetor, neste caso a mosca-branca, é que está fora de controle, seja pelo monocultivo em grande escala, com redução exacerbada da biodiversidade, seja pelo cultivo sequencial de várias culturas também em monocultivo, que abrigam o inseto vetor, aliado ao fato da resistência da mosca, aos inseticidas utilizados no seu controle”.

A própria Embrapa tem trabalhos que estão inclusive divulgados em Boletim Técnico relatando o dia de campo da Embrapa, divulgado em 17/01/2011, onde em um cultivo orgânico sem o uso de agrotóxicos, a incidência da virose foi imperceptível e com uma produtividade de 2,4 t/ha; este plantio, no mesmo local, se repete a oito anos consecutivos. Portanto o manejo adequado é possível e é viável segundo pesquisas da própria Embrapa, sem necessidades de expor a risco a saúde da população.

As coisas podem ser resolvidas com medidas simples e sem causar dependência de tecnologias caras e com alto grau de risco.

Por Patrícia Fachin

Fonte: IHU