Rio Doce: ”O impacto ainda está acontecendo”


Rio Doce: ''O impacto ainda está acontecendo''. Entrevista especial com André Cordeiro Alves dos Santos

 

“Como a lama é muito fina, ela fica em suspensão durante muito tempo, ou seja, não sedimenta, formando uma grande mancha em suspensão. Isso faz com que ela seja facilmente transportada pelas correntes marinhas, de modo que não podemos descartar a possibilidade de a lama encontrada em Abrolhos ser a da barragem da Samarco”, afirma o biólogo

Foto: http://www.brasil.gov.br/

As análises preliminares da água do Rio Docedepois do rompimento da barragem da Samarco, demonstram que os maiores impactos aconteceram na cabeceira do Rio, “porque a lama que estava barrada foi se depositando na beira do Rio e destruiu alguns povoados e matas ciliares numa distância de até 100 quilômetros da barragem”, diz André Cordeiro Alves dos Santos, membro do Grupo Independente de Avaliação do Impacto Ambiental – GIAI, formado por pesquisadores voluntários que estão analisando os impactos da lama no Rio Doce, e um dos autores do Relatório Parcial Expedição Rio Doce. Segundo o pesquisador, “o impacto na cabeceira do Rio é muito grande" e provavelmente vai demorar muitos anos para recuperá-la.

De acordo com Santos, na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, apesar de o rompimento da barragem ter acontecido há mais de dois meses, “o impacto ainda está acontecendo, porque a barragem não foi vedada e os resíduos ainda estão descendo pelo Rio”. Nesta época de chuvas abundantes, que se estende até abril, explica, “todo o material que ficou depositado na margem da cabeceira do Rio, vai começar a ir em direção à foz. Então, percebe-se um impacto contínuo que não terminou ainda, o que dificulta muito encontrar formas de resolver a situação. Se o impacto tivesse sido pontual em apenas uma parte do Rio, seria possível prever em quanto tempo o Rio seria recuperado, mas o problema é que o impacto ainda existe”.

O biólogo e especialista em Engenharia Ambiental acentua ainda que a partir de abril, quando as chuvas diminuírem, “uma das preocupações” será a de saber “como o Rio vai se comportar com o volume grande de rejeitos a partir dos períodos de seca, em que diminui a quantidade de água. Nesse período, essas substâncias tendem a se concentrar e isso gera prejuízos maiores, posteriormente, para a biota”.

André Cordeiro Alves dos Santos é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade de Santo Amaro, e mestre e doutor em Ciências da Engenharia Ambiental pela Universidade de São Paulo – USP. Foi diretor presidente da Fundação Agência da Bacia do Rio Sorocaba e Médio Tietê. Atualmente é professor associado da Universidade Federal de São Carlos – Campus Sorocaba.

Confira a entrevista.

 
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IHU On-Line – Em que pontos do Rio Doce foram feitas as coletas para analisar a qualidade da água e produzir o Relatório Parcial Expedição Rio Doce, depois do rompimento da barragem de rejeitos da Samarco?

André Cordeiro Alves dos Santos – O Grupo Independente de Avaliação do Impacto Ambiental – GIAIA, responsável pelo Relatório Parcial Expedição Rio Doce, é um grupo de pesquisadores de várias universidades, que trabalham de forma voluntária para analisar os impactos do desastre de Mariana. Fizemos coletas em todo o Rio Doce, desde a cabeceira, onde aconteceu o acidente, até a sua foz, na região de Regência, no Espirito Santo.

Foram analisados 17 pontos no Rio e mais alguns afluentes. Essas amostras estão sendo processas em vários laboratórios diferentes, porque cada pesquisador se comprometeu em fazer uma parte da análise.

Algumas análises já estão prontas, e conforme elas vão sendo concluídas, vamos liberando os relatórios parciais. Outras análises, por conta do custo e do tempo, ainda estão sendo feitas e, portanto, teremos mais alguns resultados no final do mês de janeiro.

IHU On-Line – Quais as primeiras conclusões parciais do Relatório? O que as análises feitas até então indicam sobre a situação do Rio Doce? À época do acidente, falou-se da impossibilidade de recuperá-lo. Isso tende a se confirmar?

André Cordeiro Alves dos Santos – O rio  sofreu um impacto muito grande. Um deles aconteceu próximo à cabeceira, onde aconteceu o desastre da Samarco, porque a lama que estava barrada foi se depositando na beira do Rio edestruiu alguns povoados e matas ciliares numa distância de até 100 quilômetros da barragem. Mais para baixo do rio, próximo ao Espírito Santo, predomina a quantidade de material em suspensão no rio, que são partículas de lama e de minério de ferro que estão descendo em direção ao mar.

O impacto na cabeceira do rio é muito grande e provavelmente vai demorar muitos anos para recuperá-lo, se conseguirmos recuperá-lo. Na direção da foz, o Rio tem capacidade de se recuperar numa velocidade um pouco maior. Contudo, o problema é que o impacto ainda está acontecendo, porque a barragem não foi vedada e os resíduos ainda estão descendo pelo Rio.

Nesta época de chuvas abundantes naquela região, todo o material que ficou depositado na margem da cabeceira do rio, vai começar a ir em direção à foz. Então, percebe-se um impacto contínuo que não terminou ainda, o que dificulta muito encontrar formas de resolver a situação. Se o impacto tivesse sido pontual em apenas uma parte do rio, seria possível prever em quanto tempo o rio seria recuperado, mas o problema é que o impacto ainda existe.

Como em qualquer rio, no período de chuva, os volumes de água são muito grandes, e nos períodos de seca, que começa em abril, as chuvas diminuem. Uma das preocupações agora é saber como o rio vai se comportar com esse volume grande de rejeitos a partir dos períodos de seca, em que diminui a quantidade de água. Nesse período, essas substâncias tendem a se concentrar e isso gera prejuízos maiores, posteriormente, para a biota.

IHU On-Line – Por que os rejeitos da barragem não foram contidos? Isso poderia ter sido feito?

André Cordeiro Alves dos Santos – Acho que sim, mas não tenho conhecimento de barragens em termos de engenharia para poder oferecer uma análise. Além disso, as informações que temos da Samarco são muito poucas: não se tem informações sobre a capacidade do reservatório nem sobre as causas de ele ter extravasado. O dique provisório feito pela Samarco parece que também se rompeu, talvez por conta desse período de chuva . A última informação que tive é que a empresa não garante que irá conseguir barrar os rejeitos até o final do mês de fevereiro. Então, como o impacto está acontecendo, fica difícil prever qualquer recuperação no Rio.

O maior impacto se concentra no Rio Doce, mas o problema é que em muitas cidades da região, as pessoas dependem do rio não só para o abastecimento de água, mas para o trabalho dos pescadores e areeiros. As pessoas que vivem nos dois lados da bacia vão sentir os impactos dessa tragédia por um longo tempo. Talvez as pessoas ainda não tenham noção dessa tragédia, mas quem visita a região, fica assustado.

IHU On-Line – Segundo o Relatório Parcial Expedição Rio Doce, o Manganês, o Arsênio, o Chumbo estão acima do permitido pela legislação do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA. Quais os impactos dessa alteração?

André Cordeiro Alves dos Santos – Esses metais são tóxicos porque em concentrações altas, podem causar impactos à saúde. Fizemos uma única amostragem, mas é claro que uma única amostragem não consegue prever se a contaminação é constante ou não, se esse material está liberado do sedimento para ir para o abastecimento público ou não. Na verdade, a análise é mais um indicativo de alerta para que haja um monitoramento constante para ver como isso irá se comportar no futuro.

A região do Rio Doce já tem, historicamente, problemas de contaminação da água por conta da mineração. Então, a contaminação no Rio não é uma novidade, mas estamos preocupados com o aumento da contaminação a partir do momento do desastre da Samarco.

IHU On-Line – Como o senhor avalia o processo de realização das análises da qualidade da água e do impacto hidrológico e ambiental de modo geral, quando um acidente dessa magnitude acontece? O Brasil tem tecnologias e recursos necessários para fazer esse tipo de análise rapidamente? Quais as dificuldades nesse sentido?

André Cordeiro Alves dos Santos – Já existia monitoramento na bacia do Rio Doce, tanto que o controle da poluição orgânica é feito pelo Comitê de Bacia e pelos órgãos de controle do estado de Minas Gerais. Mas no Brasil ainda temos muita deficiência tanto em pontos de coleta quanto em quantidades de análise. Não se trata de um problema de tecnologia, porque temos centros de pesquisa tanto em Minas Gerais quanto em São Paulo e em outras regiões do país, mas o problema é que deslocar uma equipe a campo, fazer a coleta desse material, transportá-lo de modo refrigerado e fazer as análises, custa caro, ou seja, não é um processo barato.

“Talvez as pessoas ainda não tenham noção dessa tragédia, mas quem visita a região, fica assustado

  

 

A maior parte dos estados não investe para fazer esse tipo de monitoramento; portanto, é um problema de investimento. Quando acontece um acidente igual a esse, as pessoas começam a prestar a atenção e a se perguntarem por que os monitoramentos nunca foram feitos. Eles não são feitos porque não são prioridade.

Esperamos que a partir de agora os estados se certifiquem de fazer monitoramentos constantes, porque uma das nossas dificuldades ao fazer o monitoramento do Rio Doce foi em relação à situação em que o Rio se encontrava antes, porque tem pouca informação sobre a condição original do Rio, o que dificulta as análises sobre a possibilidade de recuperá-lo ou não.

No caso específico desse acidente, há outra particularidade: a maior parte dos nossos métodos de avaliação e de monitoramento leva em conta o esgoto doméstico, mas no caso desse acidente, não se trata de analisar matéria orgânica, mas matéria inorgânica, ou seja, é outro tipo de elemento que vazou, e os nossos padrões de qualidade não são voltados para esse tipo de elemento, porque esse tipo de análise nunca foi uma prioridade.

IHU On-Line – Há uma especulação sobre se a lama encontrada em Abrolhos pode ser da barragem de rejeitos da Samarco. O senhor tem algumas informações adicionais a esse respeito? Quais as possibilidades?

André Cordeiro Alves dos Santos – Estou acompanhando essa questão pelos jornais e não fizemos coletas na região marinha, mas pretendemos, numa segunda etapa de coleta, fazer algumas coletas na região marinha. É possível que a lama em Abrolhos seja da barragem da Samarco, porque as correntes marinhas naquela região tanto levam para a água para o Sul quanto para o Norte, para a Bahia. Então, não dá para descartar a possiblidade de a lama ser da barragem da Samarco.

O que vi na região de Regência, no Espirito Santo, é que como a lama é muito fina, ela fica em suspensão durante muito tempo, ou seja, não sedimenta, formando uma grande mancha em suspensão. Isso faz com que ela seja facilmente transportada pelas correntes marinhas, de modo que não podemos descartar a possibilidade de a lama encontrada em Abrolhos ser a da barragem da Samarco.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

André Cordeiro Alves dos Santos – Gostaria de informar que GIAIA é um grupo de pesquisadores voluntários, e os custos que estamos tendo com as análises da água do Rio Doce estão sendo pagos com as verbas que os laboratórios dispõem, justamente para dar uma garantia maior para a população da região sobre a atual qualidade da água, porque a quantidade de informação disponível ainda é muito baixa.

(Por Patricia Fachin)

Fonte: IHU

Se não recuperar as nascentes, vai ter diminuição de água


‘Se não recuperar as nascentes, vai ter diminuição de água’, alerta biólogo

floresta

 

Fabiano Melo comenta o seu artigo sobre a morte do Rio Doce

Revista Brasil aborda a situação dos rios e mananciais das cidades brasileiras.

O biólogo, doutor em Ecologia, pós-doutor em Antropologia Professor Associado da Universidade Federal de Goiás (UFG) e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza, Fabiano Melo, escreveu o artigo: A “morte matada” de um rio que sofria de “morte morrida”. Uma leitura a respeito do rompimento da barragem de rejeito de mineração em 2015 que apressou o que ocorre há, pelo menos, um século no Rio Doce.

Ele explicou que “morte matada” de um rio que sofria de “morte morrida” é um linguajar muito mineiro, muito próprio da região e que fez essa analogia tentando mostrar a situação do Rio Doce.

Fabiano Melo esclarece que “morte matada” devido ao maior desastre natural que foi o rompimento da barragem, com grande impacto sobre a bacia do Rio Doce e provocado pelo homem. E a “morte morrida” devido ao rio já vir sofrendo há décadas uma morte muito lenta. “Já vinha agonizando essa morte, exatamente porque as autoridades e a própria sociedade não presta a devida atenção que os nossos rios merecem”, desabafa o biólogo.

Ele concluí falando sobre a recuperação de nascentes, alerta para as mudanças climáticas em cursos que vão prejudicar ainda mais as condições dos nossos lagos e das bacias hidrográficas. “Portanto se a gente não fizer o dever de casa e de fato recuperar estas nascentes, boa parte das margens, das matas ciliares vai ter um grande diminuição de água”.

Participou da entrevista também o prefeito de Minaçu(GO), Maurides Rodrigues Nascimento, que falou sobre a realidade da Usina Hidrelétrica de Serra da Mesa. Ele conta que o Lago Serra da Mesa era um dos maiores reservatórios de água da América e nesta semana teve o menor nível registrado nos últimos 10 anos.

 

Audio Player


Saiba mais sobre o assunto, ouvindo a entrevista na íntegra no player acima.

 

 

O Revista Brasil é uma produção das Rádios EBC e vai ao ar, de segunda a sábado, às 8h, na Rádio Nacional AM Brasília. A apresentação é de Valter Lima.

in EcoDebate, 25/07/2016

 

O Rio Doce, agora, é apenas uma fotografia na parede


O Rio Doce, agora, é apenas uma fotografia na parede, artigo de Márcia Brandão Carneiro Leão

 

 

Parque Estadual do Rio Doce – Minas Gerais. Foto de Malcoln de Oliveira Silva

 

[EcoDebate] Difícil estabelecer um corte na linha do tempo para começar a falar dos absurdos, horrores e irresponsabilidades envolvidos no rompimento das barragens de rejeitos de mineração da Samarco (empresa controlada pela Vale e pela BHP Biliton). Mais difícil ainda mensurar a dimensão exata dos impactos do desastre.

O ideal talvez seja começar pelo licenciamento: a Barragem de Santarém (a segunda que se rompeu em Bento Rodrigues, Mariana, em seguida à do Fundão, na mesma data) está com a Licença de Operação vencida desde 2013 (assim como a Mina do Germano, que faz parte do mesmo complexo). No mesmo ano, o Ministério Público Federal (baseado em laudo produzido pelo Instituto Prístino) alertou para os riscos de desestabilização e da potencialização de processos erosivos, provocados pelo contato entre a pilha de rejeitos e a barragem do Fundão.

As autoridades ambientais do Estado de Minas Gerais, apesar das advertências, asseveraram, na oportunidade, que tudo estava “na mais perfeita ordem” e dentro da legalidade.

Em 5 de novembro deste ano acontece o desastre liberando, ao todo, 62 milhões de metros cúbicos de água e rejeitos de mineração (equivalentes a um terço da capacidade plena da Represa de Guarapiranga), diretamente no Rio Doce.

Para se ter uma idéia do alcance territorial da tragédia, basta lembrar que a Bacia do Rio Doce – localizada na Região Sudeste e a 5ª maior bacia hidrográfica brasileira – abrange dois Estados (Minas Gerais e Espírito Santo), com uma área de 83.400 km² (quase o tamanho da Áustria), desaguando no mar (em Regência Augusta, município de Linhares, no Espírito Santo).

A partir daí, tem início uma sucessão de eventos, na qual é difícil de acreditar:

Logo nas primeiras horas, enquanto a Defesa Civil, bombeiros e voluntários tentavam socorrer as vítimas do desastre, quem se encarregou de preservar a “cena do crime” e “investigar” os acontecimentos foi a empresa de segurança privada da própria Samarco, sob o olhar agradecido e conivente das autoridades responsáveis. Não era possível obter nenhum tipo de informação da Assessoria de Imprensa e muito menos, do Governo do Estado de Minas.

O Governo Federal emitiu uma fria e distante nota na qual lamenta o acidente e trata de liberar o FGTS da população afetada para que ela trate de “se socorrer” com suas próprias reservas para o futuro. Generosidade? Não, apenas transferiram à população o ônus de pagar, com seus próprios recursos, os prejuízos causados pela Samarco. O que acontecerá a essas pessoas quando se aposentarem e não tiverem mais o Fundo de Garantia é algo que sequer foi pensado.

Foram necessários 3 dias para que o Governador do Estado de Minas – eleito com financiamento das mineradoras – se pronunciasse sobre o acontecido, numa coletiva de imprensa convocada que teve lugar nas dependências da sede da Samarco. Não bastasse o insólito da situação, em sua fala, o Chefe do Executivo mineiro saiu em defesa da empresa, afirmando que todas as providências estavam sendo tomadas pelo empreendedor.

Daí em diante começaram a brotar de todos os lados os defensores da mineradora: o Senador Aécio Neves – cuja campanha teve financiamento da Vale – exorta a que não se procurem os culpados e o Secretário de Governo de Desenvolvimento Econômico, Altamir Roso, classifica a Samarco como vítima.

Em meio a toda essa onda de “solidariedade”, em nenhum momento, nenhum CEO da Vale, Samarco, ou BHP Biliton – objetivamente responsáveis pela situação e seus desdobramentos, do ponto de vista ambiental, civil e provavelmente, penal – apareceu diante das câmeras para prestar nenhum tipo de esclarecimento, ou oferecer qualquer tipo de informação. O mínimo que uma empresa decente e ética deveria fazer em circunstâncias desesperadoras como essa, seria montar um centro de atendimento e de informações às vítimas e aos familiares dos desaparecidos, e isso não aconteceu.

Na Assembleia Legislativa de Minas, no último dia 10 novembro, foi formada uma Comissão para investigar as causas e impactos do “acidente”, composta por 15 Deputados Estaduais, sobre sete dos quais existem informações de que as campanhas foram financiadas pelo setor de mineração.

O tempo continua a passar e até às 22h do dia 12 de novembro, nem a Presidente da República, nem a Ministra do Meio Ambiente foram a público para se pronunciarem a respeito da tragédia. Somente nessa data, a Presidente encontrou uma brecha na agenda para sobrevoar a região onde o caos impera.

Enquanto isso, o “mar de lama” alcançou o Espírito Santo e já comprometeu o abastecimento de água de mais de 500.000 pessoas, ao longo dos 23 municípios ribeirinhos. Entre eles estão grandes cidades, como Valadares, por exemplo.

Mas a extensão da tragédia não se restringe às vidas perdidas, aos desaparecidos, à falta d’água, à impossibilidade de recuperar cidades, campos e ecossistemas soterrados pela lama – cujo conteúdo potencialmente tóxico ninguém explicitou – ou mesmo, à constatação do tamanho da enfermidade que toma conta de nosso Estado Democrático de Direito. Ela é muito maior do que se pode imaginar e apenas começa a ser estimada e sentida.

A lama que “chega”, não “passa” totalmente. Ela fica, em boa parte, depositada no fundo do Rio Doce, conformando um novo leito para o rio, preenchendo o fundo com um substrato inerte e estéril, onde a vida será praticamente impossível por aproximadamente 100 anos, segundo estimativas do biólogo Andre Ruschi.

André avalia, ainda, que cerca de 10 mil quilômetros quadrados do litoral capixaba serão afetados por alguns anos, enquanto parte da lama termina de descer, atingindo três Unidades de Conservação Ambiental, entre as quais Santa Cruz, um dos mais importantes criadouros marinhos do Oceano Atlântico.

Não será possível retornar às condições preexistentes.

São impactos socioambientais irreversíveis, que poderiam ter sido evitados e acontecem exatamente no momento em que governo e poder econômico tentam alterar as regras do licenciamento ambiental.

A “Agenda Brasil”, que pretende renovar o fôlego econômico do país, proporcionou as condições ideais para que proliferassem os projetos de “flexibilização”, “simplificação” e “desburocratização” do processo de licenciamento ambiental.

Como reporta Maurício Guetta – advogado do ISA – Instituto Socioambiental -, ao receber a notícia do desastre, durante o encerramento do seminário “Licenciamento Ambiental: realidade e perspectivas”: “o licenciamento ambiental é uma conquista do povo brasileiro e deve ser aprimorado” e as propostas legislativas que se apresentam, claramente “consideram o meio ambiente e as populações afetadas, meros entraves ao desenvolvimento”.

Não bastasse essa movimentação perversa, ainda existe a ameaça representada pelo PL n°37/2011, que pretende instituir o novo Código de Mineração e que tem como relator, o deputado federal Leonardo Quintão (PMDB-MG), que teve quase metade de sua campanha eleitoral financiada por mineradoras. Nas palavras de Guetta, “a proposta, vale registrar, não traz qualquer medida preventiva ou protetiva ao meio ambiente e às populações afetadas”.

Um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida parece, neste momento, apenas um “sonho” constitucional.

Em meio a tanta desinformação e descaso, só uma certeza dilacera o coração dos brasileiros: o Rio Doce, agora, é apenas uma fotografia na parede…mas como dói!!!

*Márcia Brandão Carneiro Leão é professora de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade a Mackenzie Campinas. É graduada, mestre e doutora em Direito Internacional pela USP. Sócia fundadora e 1 a. vice-presidente da SBDIMA-Sociedade Brasileira de Direito Internacional de Meio Ambiente. Sócia fundadora e conselheira da APRODAB-Associação de Professores de Direito Ambiental do Brasil. Sócia-fundadora da ALADA-Associação Latino Americana de Direito Ambiental.

 

in EcoDebate, 20/11/2015