É a diversidade de plantas cultivadas e animais domésticos, e a sua capacidade de se adaptar a condições ambientais adversas (clima, solo, vegetação etc.) e a necessidades humanas específicas, que assegura aos agricultores a possibilidade de sobrevivência em muitas áreas sujeitas a estresses ambientais. É o cultivo de espécies diversas que protege os agricultores, em muitas circunstâncias, de uma perda total da lavoura, em casos de peste, doença, seca prolongada etc. Com as monoculturas, de estreitíssima base genética, ocorre o contrário: as pestes, doenças etc. atingem a única espécie cultivada e destroem completamente a lavoura.
Área desmatada / Maurício Torres
A uniformidade genética cria enormes riscos e incertezas para os cultivos agrícolas, que se tornam especialmente vulneráveis. A situação de vulnerabilidade genética1 se caracteriza quando uma planta cultivada em larga escala é uniformemente suscetível a pestes, doenças ou estresses ambientais, devido à sua constituição genética, criando, dessa forma, riscos de perdas totais nas lavouras. Ainda que uma variedade moderna tenha sido desenvolvida para ter resistência contra um determinado patógeno2, qualquer mutação nesse patógeno, por menor que seja, poderá ser suficiente para quebrar tal resistência, tornando vulnerável toda a lavoura.
Um dos mais famosos exemplos dos perigos representados pela uniformidade genética foi a “Grande Fome” ocorrida na Irlanda, entre 1845 e 1851, provocada pela devastação generalizada das plantações de batatas por um fungo (Phytophthora infestans). Noventa por cento da população da Irlanda dependia da batata como alimento principal. O fungo acabou com as plantações de batata e a fome matou 2 milhões de irlandeses (25% da população). Nesse período, 1,5 milhão de irlandeses migraram para os Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia. Muitos morreram durante a viagem ou logo na chegada, fragilizados pela subnutrição3.
Há, entretanto, exemplos mais recentes. Nos anos 1970, uma doença de planta causada por um fungo (Bipolaris maydis), conhecida como “praga da folha do milho sulino”, atacou as plantações de milho de Estados norte-americanos (inicialmente os do sul e depois chegou até o norte, atingindo Minnesota, Michigan e Maine). Alguns Estados chegaram a perder metade de suas lavouras. Isso ocorreu também em 1971, numa plantação soviética de uma mesma variedade de trigo, conhecida como Besostaja, em uma área de 40 milhões de hectares, que se estendia de Kuban à Ucrânia. Tal variedade apresentava altos rendimentos quando cultivada em Kuban, onde as temperaturas eram mais amenas. Naquele ano, a Ucrânia sofreu um inverno extremamente rigoroso, que devastou suas plantações e levou à perda de 20 milhões de toneladas de trigo, que correspondiam de 30% a 40% da lavoura. Conforme destacam Cary Fowler e Pat Mooney4, em ambos os casos a culpa pelas perdas das lavouras de milho e trigo, nos Estados Unidos e na Ucrânia, não deve ser atribuída à praga que infestou as plantações de milho ou ao inverno rigoroso da Ucrânia, e sim à uniformidade genética dos cultivos5. As lavouras não teriam sido tão drasticamente devastadas se tivessem sido plantadas variedades diversas.
A agrobiodiversidade é essencial à segurança alimentar e nutricional, que consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.
Esse é o conceito estabelecido pelo artigo 3º da Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, a fim de assegurar o direito humano à alimentação.
A agrobiodiversidade está não só associada à produção sustentável de alimentos, como tem também papel fundamental na promoção da qualidade dos alimentos. Uma alimentação diversificada – equilibrada em proteínas, vitaminas, minerais e outros nutrientes – é recomendada por nutricionistas e condição fundamental para uma boa saúde. Só os sistemas agrícolas agrobiodiversos favorecem dietas mais nutritivas e equilibradas. Estão diretamente relacionados a redução da diversidade agrícola e o empobrecimento das dietas alimentares. A erosão genética no campo afeta não só os agricultores como também os consumidores.
Os modelos de produção agrícola têm implicações diretas para a alimentação, a nutrição e a saúde humana. A agricultura “moderna” e o cultivo de poucas espécies agrícolas favoreceram a padronização dos hábitos alimentares e a desvalorização cultural das espécies nativas. Nos Andes, por exemplo, muitas plantas tradicionalmente empregadas na alimentação de povos indígenas e agricultores locais, como quinua (Chenopodium quinoa), amaranto (Amaranthus caudatus), chocho (Lupinus mutabilis), kañina (Chenopodium pallidicaule), viraca (Arracacia xanthorrhiza) e yacón (Polymnia suochifolia), estão sendo abandonadas e substituídas por espécies importadas, como espinafre, couve-flor e aipo, cujo cultivo exige emprego bem maior de adubos e fertilizantes químicos.
Nas regiões tropicais das Américas têm sido cada vez menos utilizadas plantas como beldroega (Portulaca oleracea, também conhecida como “salada de negro”, cultivada para fazer salada e de valor nutricional quase igual ao do espinafre) e capuchinha (Tropaeolum majus), que já foram muito importantes para os sistemas agrícolas locais e a segurança alimentar de populações rurais6.
Milho cultivado na comunidade remanescente quilombola de Bombas no município de Iporanga, São Paulo. 2010 / Anna Maria Andrade / ISA
A alimentação centrada no consumo de plantas (frutas, legumes e verduras) foi substituída por dietas excessivamente calóricas e ricas em gorduras, mas pobres em vitaminas, ferro e zinco. Os alimentos são feitos com um número cada vez menor de espécies e variedades de plantas, e os derivados de milho e soja, por exemplo, estão presentes na maioria dos produtos alimentícios industrializados. Para que se tenha uma ideia, estima-se que existam entre 250.000 e 420.000 espécies de plantas superiores, das quais apenas trinta corresponderiam a 95% da nutrição humana, e apenas sete delas (trigo, arroz, milho, batata, mandioca, batata-doce e cevada) responderiam por 75% desse total.
Estimativas mais otimistas apontam, entretanto, que 103 espécies seriam responsáveis por 90% dos alimentos consumidos no planeta, e não somente as vinte ou trinta espécies mais comumente mencionadas7. De qualquer forma, a alimentação humana se baseia em um número reduzido de espécies vegetais, o que compromete a saúde.
A alimentação pouco nutritiva e balanceada responde, em parte, pela epidemia mundial de doenças crônicas como obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e algumas formas de câncer. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 177 milhões de crianças de todo o mundo estão ameaçadas por doenças relacionadas com a obesidade, e a previsão é que 2,3 bilhões de pessoas de mais de 15 anos serão obesas até 2015. Atualmente, há 1,5 bilhão de pessoas obesas no mundo, enquanto 854 milhões são subnutridas. Nos países em desenvolvimento, o enfrentamento da fome e da miséria passa necessariamente pela adoção de práticas agrícolas mais sustentáveis8.
A agricultura interage com o ambiente de diversas formas que afetam a saúde humana. Os efeitos nocivos do uso indiscriminado de agrotóxicos são bem conhecidos. Em casos extremos, chegam a provocar anomalias genéticas, tumores e câncer. A Organização Mundial da Saúde estima que ocorrem no mundo cerca de 3 milhões de intoxicações agudas por agrotóxicos, com 220.000 mortes por ano, das quais cerca de 70% ocorrem em países em desenvolvimento9. Além da intoxicação de trabalhadores rurais que têm contato direto ou indireto com esses produtos, a contaminação de alimentos atinge também os consumidores. Por causa da sua periculosidade para a saúde humana e para o meio ambiente, os agrotóxicos estão sujeitos a controles legais em muitos países do mundo, inclusive no Brasil10 . As alterações ambientais produzidas pela irrigação e pelo desmatamento favorecem também o desenvolvimento de doenças como malária, esquistossomose etc.
Cesto de pimentas colhidas por uma mulher Pira-Tapuya, na sua roça dos arredores de São Gabriel da Cachoeira Ludivine Eloy/ISA 2004 / Ludivine Eloy/ISA
A agrobiodiversidade é um componente essencial dos sistemas agrícolas sustentáveis. Um de seus princípios é justamente a diversificação dos cultivos. Um maior número de espécies em determinado ecossistema, associado a outros fatores ecológicos, assegura maior estabilidade e menor necessidade de insumos externos, como os agrotóxicos e os fertilizantes nitrogenados. Os sistemas agrícolas diversificados também propiciam colheitas de diferentes cultivos em épocas do ano alternadas. A quebra de uma safra, ou a redução do preço de determinada cultura, não causa tantos prejuízos como nos sistemas monoculturais11.
A diversificação de um agroecossistema pode ser realizada de várias formas, que vão desde o consórcio de culturas, passando pela rotação (os “cultivos alternados”), até os sistemas agroflorestais, que são um sistema de manejo florestal que visa conciliar a produção agrícola e a manutenção das espécies arbóreas. Esses sistemas promovem o aumento da matéria orgânica nos solos, diminuem a erosão e conservam a diversidade de espécies. Quando as matas ciliares são recuperadas, verifica-se também a diminuição da turbidez da água e uma ampliação da disponibilidade de recursos hídricos12.
Cada agroecossistema, entretanto, apresenta características distintas, e exige soluções específicas. A agricultura sustentável requer uma compreensão das complexas interações entre os diferentes componentes dos sistemas agrícolas. Cada agroecossistema deverá encontrar as soluções adequadas às suas condições ambientais, econômicas e sociais. A especialização dos sistemas produtivos e a homogeneidade genética que os caracteriza não só provocam a diminuição da diversidade de espécies e variedades como também reduzem espécies importantes ao equilíbrio dos agroecossistemas, como as bactérias fixadoras de nitrogênio, os fungos que facilitam a absorção de nutrientes, os polinizadores, dispersores de sementes etc. Comprometem ainda a resistência e a resiliência dos agroecossistemas, tornando-os mais vulneráveis ao ataque de pragas, secas, mudanças climáticas e outros fatores de risco13.
Autoria: Juliana Santilli (sócia-fundadora do ISA e promotora de justiça do Ministério Público do DF).
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Notas e Referências
NATIONAL ACADEMY OF SCIENCES. Genetic vulnerability of major crops. Washington: 1972.
Patógeno é qualquer organismo capaz de causar doença infecciosa em plantas, ou seja, fungos, bactérias, vírus, nematoides e protozoários.
Consultar: Woodham-Smith, Cecil. The great hunger: Ireland 1845-1849. Londres: Penguin Books, 1991; Bartoletti, Susan Campbell. Black potatoes: the story of the great Irish famine, 1845-1850. Michigan: Gale, 2002.
FOWLWE, C. & MOONEY, P. Shattering: food, politics, and the loss of genetic diversity. Tucson: The University of Arizona Press, 1990. p. IX-XI.
Ibid., p. XI.
FAO. Plant Production and Protection Division. Seed and Plant Genetic Resources Service. “Seed policy and programmes in Latin America and the Caribbean.” In: Regional Technical Meeting on Seed Policy and Programmes in Latin America and the Caribbean, 20-24/3/2000, Merida, México. Proceedings. Roma: FAO, 2000. p. 32. (FAO Plant Production and Protection Paper, 164).
WALTER, B. M. T et al. “Coleta de germoplasma vegetal: relevância e conceitos básicos.” In: WALTER, B. M. T. & CAVALCANTI, T. B. (eds.). Fundamentos para a coleta de germoplasma vegetal. Brasília: Embrapa, 2005a. p. 28-55.
Consultar: Stern, Linda Jo et al. “Trabalhando agricultura e saúde conjuntamente.” Agriculturas: experiências em agroecologia. Rio de Janeiro: AS-PTA; Leusden: Ileia, v. 4, n. 4, p. 18-22, dez. 2007; Jhamtani, Hira & Jenny, Putu Anggia. “Superando a desnutrição com cultivos e sistemas alimentares locais.” Agriculturas: experiências em agroecologia. Rio de Janeiro: AS-PTA; Leusden: Ileia, v. 4, n. 4, p. 23-25, dez. 2007.
Em 2008, o Brasil assumiu a liderança no consumo mundial de agrotóxicos. As vendas de agrotóxicos totalizaram 733,9 milhões de toneladas e movimentaram cerca de 7,1 bilhões de dólares, segundo o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para a Defesa Agrícola (Sindag). O Brasil superou o recorde dos Estados Unidos, maior produtor de alimentos do mundo, que consumiu 646 milhões de toneladas de agrotóxicos no mesmo período. Fonte: “No reino dos agrotóxicos: a Anvisa pode banir 13 pesticidas do Brasil, novo líder mundial de consumo”. CartaCapital, 20/05/2009, nº 546.
A Lei nº 7.802/1989 regula a utilização, comercialização, transporte, armazenamento, importação e exportação de agrotóxicos.
EHLERS, E. . “Agricultura sustentável.” In: Instituto Socioambiental. Almanaque Brasil Socioambiental: uma nova perspectiva para entender o país e melhorar nossa qualidade de vida. São Paulo: ISA, 2008. p. 414-419.
BEZERRA, M. C. & VEIGA, J. E. (coords.). Agricultura sustentável. Brasília: MMA; Ibama; Consórcio MPEG, 2000. p. 75.
EHLERS, op. cit., p. 419.