Degradação e desertificação no Semiárido


Especialista alerta para degradação e desertificação no Semiárido

semiárido

“O processo de degradação e de desertificação está em marcha acelerada no Semiárido, então alguma coisa tem que ser feita e agora temos um agravante que é o aquecimento global”. O professor João Ambrósio de Araújo Filho é grande entendedor do Semiárido brasileiro. Possui vasta experiência no assunto manejo agrossilvipastoril da Caatinga. Ao longo de sua trajetória, realizou pesquisas de grande relevância social e ambiental para a região. Recentemente, ele integrou a programação do Curso de manejo florestal sustentável, realizado este mês em Campina Grande (PB), e nos concedeu entrevista sobre temas como sistemas de produção agrossilvipastoril, recuperação de áreas degradadas e estoque de forragem.  O pesquisador possui graduação em Agronomia pela UFC (1965), mestrado (1968) e doutorado (1975) em Range Management pela Universidade do Arizona e pós-doutorado pela Universidade de Reading, Inglaterra (1996). Foi professor adjunto da UFC (1970-1984) e da Universidade Estadual Vale do Acaraú (1994-2012), pesquisador da Embrapa (1984-2006), membro do Comitê de Zootecnia e Medicina Veterinária (1990-1992) e membro do Governing Board do Icrisat (Instituto Internacional de Pesquisa em Colheitas para os Trópicos Semiáridos – Índia, 2001-2003).

INSA – O que é um sistema de produção agroflorestal? 
JA – Eu tenho notado que as pessoas não estão muito precisas quando falam sobre sistemas de produção agroflorestal, aí falam manejo agrossilvipastoril e quase sempre só tocam nesse ponto como se fosse uma coisa à parte, mas não é. Não existe essa história de manejo agropastoril, a história é a seguinte: você tem um sistema de produção agroflorestal ou agrossilvicultural (nome mais correto, embora o uso tenha consagrado o termo agroflorestal), que é aquele que você combina árvores, florestas com culturas (agro) e/ou animais, simultaneamente, ou numa sequência temporal. Ou seja, é a combinação de árvores – que têm que ser nativas –, culturas (milho, sorgo, feijão, etc) e/ou animais, pode ter os dois, em uma mesma área, claro, simultaneamente ou numa sequência temporal.

INSA – O manejo agrossilvipastoril é viável para a Caatinga? 
JA – É a salvação da lavoura, como diz a história. Nós temos três modelos gerais (embora cada modelo possa comportar 
dezenas de sub-modelos). Primeiro: o agrosilvicultural (árvores e agricultura, só entra esses dois componentes), próprios para áreas que têm um potencial bom para a agricultura, áreas de inverno regular, sem ocorrências de seca, regiões localizadas nos climas de sub-úmido, úmido, etc (é o da Amazônia, do Cerrado). Segundo: nós temos o silvipastoril, esse é para a região semiárida, ele combina criação de animais com floresta.

Todas aquelas técnicas de manejo da Caatinga (raleamento, rebaixamento, enriquecimento), são sistemas de produção silvipastoril. Ele é bom para a região semiárida porque a presença do animal, a exemplo do boi, é uma espécie de tampão contra os efeitos da seca sobre a produtividade da área. O animal na área tem a capacidade de absorver os efeitos da estiagem e reduzir o impacto. Por exemplo, se você pega uma área de pecuária bem manejada e compara com uma área de agricultura, num período de seca como o atual, a agricultura vai perder 80% da produtividade, mas a pecuária perde em torno de 20%, se bem manejada, claro! Não na situação agora que, na maioria da Caatinga, a pecuária está como doente terminal. Por fim, temos o agrossilvipastoril, que combina animais, culturas e árvores. Vou dar um exemplo, um roçado ecológico é um sistema de produção agrossilvipastoril porque, durante o inverno, ele é um meio de produção de grãos (milho, feijão, etc), e no verão, é um banco de proteínas. É um sequencial, quer dizer, os animais só entram em uma estação do ano, a primeira estação é agrícola, a segunda é pastoril. Então, por isso, agrossilvipastoril. Esse modelo também é muito adequado para o Semiárido, principalmente em áreas de solos que têm certo potencial agrícola.

INSA – Quais estratégias podem ser utilizadas para o estoque de forragem? 
JA – Em primeiro lugar é utilizar a forragem dentro do percentual recomendado. Por exemplo, em uma área de Caatinga raleada, rebaixada, você deve ajustar a carga animal de tal maneira que a utilização da forragem disponível não ultrapasse 60% (tem que ficar sempre 40% do que está produzido, em dezembro tem que ter 40% no campo em relação ao que tinha em agosto). Isso vai garantir uma recuperação do solo, um aumento do teor de matéria orgânica e melhorar a chamada resiliência desse solo ou a capacidade de absorver principalmente os efeitos da seca. Agora, se está me falando em reserva alimentar estratégica, aí temos diversas alternativas de armazenagem de forragem (feno, silagem), ou então uso de cactáceas. Em alguns lugares pode ser a palma forrageira, a mais comum, mas vamos sanear uma injustiça muito grande. Nesses últimos quatro anos de seca, grande parte da nossa pecuária foi salva com mandacaru, em um processo puramente extrativista e predatório.

Porque durante os anos melhores não formamos áreas com mandacaru adensado para servir de reserva estratégica numa seca dessas? O mandacaru é mais lento que a palma, está certo, mas se já estão usando palma irrigada, então se você irrigar mandacaru, a coisa vai mudar. Há regiões, como o sertão do Ceará, por exemplo, que por questões climáticas e fisiológicas, o mandacaru produz melhor que a palma, em condições de sequeiro. Outra coisa é que tem a variedade de mandacaru sem espinhos, bem adaptada. Além disso, enquanto a palma tem de 7 a 8% de proteína, o mandacaru tem 18% de proteína. Infelizmente, eu sempre digo, se a gente tivesse investido em mandacaru metade do dinheiro que a gente investiu em palma, a gente estava melhor na maioria do nosso sertão baixo, da depressão sertaneja.

INSA – Com relação às áreas degradadas do bioma Caatinga, o que pode ser feito para reverter esse processo e recuperar as áreas produtivas?
JA – Eu fiz uma consultoria para o projeto mata branca, em todo o Semiárido, sobre as técnicas existentes para recuperação de áreas degradadas. Eu não posso negar que fiquei decepcionado, porque em termos de recuperação de áreas degradadas todo mundo fala, mas não tem nada. E outra coisa muito interessante é que muita gente que está falando não tem noção da coisa. A degradação de uma área tem, em termos gerais, seis níveis, e é muito importante que se perceba em que nível se está, antes de definir que prática irá ser usada. Você tem a degradação que é simplesmente o início, quer dizer, apenas problemas na fisiologia das plantas mais importantes que está sendo explorada. A segunda fase é a mudança na composição da vegetação original, as espécies melhores começam a sumir, e as espécies intermediárias ou piores começam a aumentar na área, mas são espécies daquela comunidade. Começa a haver mudanças, por exemplo, a pressão de pastejo começa a fazer com que 
as melhores espécies forrageiras desapareçam e as intermediárias ocupem o lugar delas. Então você tem a degradação, mas quando olha, está bonito, está tudo verde, mas a qualidade muito baixa. Temos várias alternativas: uma alternativa muito interessante são os sistemas de produção agroflorestal, principalmente no caso da nossa pecuária pode ser silvipastoril ou agrosilvipastoril, são opções interessantes, agora precisam de um tempo e custam investimentos.

Porque em todo o Semiárido nós temos uma conta ambiental de proporções gigantescas, nós maltratamos e superutilizamos essa nossa vegetação da Caatinga a níveis totalmente incompatíveis com a sobrevivência dela. Por isso já temos 25% de área desertificada, temos degradação em mais de 25% da área (está degradada mesmo!) e essa conta quem é que vai pagar? Quem for recuperar. Por exemplo, você pega uma área no estágio 4 (desaparecimento da cobertura vegetal original), digamos que é uma pastagem. Vamos analisar o seguinte: o nível 1 de degradação é distúrbio fisiológico, no quarto, já é o desaparecimento da vegetação original. No primeiro, se faz só um ajuste, como é uma pastagem, reduz o número de animais, aumenta a produção e recupera a área, apenas reduzindo o número de animais, no quarto, você vai ter que tirar todos os animais de dentro da área, proteger a área, possivelmente ressemear, fazer o enriquecimento com espécies nativas, preferencialmente para recuperação da biodiversidade, talvez repor fertilidade, com adubos orgânicos, dependendo da área, e os animais vão ficar fora pelo menos 2 ou 3 anos, para poder entrar na área de volta. É aquela história: ou tu faz ou tu desertifica por completo. O processo de degradação e de desertificação está em marcha acelerada no Semiárido, então alguma coisa tem que ser feita e agora temos um agravante que é essa história muito certa do chamado aquecimento global.

A Caatinga possui um patrimônio imenso de espécies xerófilas, adaptadas à seca, mas no ritmo em que estamos, não vamos mais ter a vegetação porque estamos acabando com o que temos. Participei recentemente de um evento do Ministério do Meio Ambiente, em João Pessoa, sobre Unidades de Conservação. Por motivos óbvios, todos os locais escolhidos e mapeados para serem Unidades de Conservação ficavam em cima de serras, porque é onde resta vegetação arbórea e chove mais. É interessante e fundamental porque preservarmos a vegetação da Caatinga podemos ter um banco de sementes excepcional, vamos ter abrigo para a fauna, e assim por diante. Mas temos que montar também Unidades de Conservação em áreas degradadas, primeiro porque as espécies que estão lá na área degradada podem ser a base da recuperação da área. Há muitas espécies lá que, do nosso ponto de vista de pecuarista, não servem para coisa nenhuma, mas do ponto de vista da natureza são importantes, como espécies pioneiras. Segundo, toda área degradada tem as áreas relíquias, áreas de difícil acesso protegidas por touceiras de mandacaru, xique-xique, onde não entra boi, não entra cabra, nem ovelha, mas o extrato herbáceo está lá, e aquelas plantas são testemunhas do potencial desta área, do que ela pode evoluir se você proteger.

INSA – Quais os principais desafios para se promover o manejo da Caatinga?
JA – Treinamento de técnicos, sensibilização dos produtores, acesso a crédito e uso das tecnologias disponíveis. Já existem tecnologias prontas para serem usadas, o crédito está razoável, mas falta a sensibilidade do produtor e, porque não dizer, falta o treinamento dos técnicos. Qual escola de agronomia no Semiárido tem uma disciplina chamada “Caracterização do semiárido e do bioma Caatinga”? O pessoal sai da agronomia sem sequer saber o que é Caatinga. Nós temos que ter essa disciplina, assim como de recuperação de áreas degradadas do Semiárido, sobre técnicas de manejo da Caatinga para fins agrícolas e pastoris, nada disso existe. Não quero exagerar, mas é uma tendência muito grande de o pessoal das Universidades se voltar muito para o agronegócio. Para começo de conversa, 62 a 65% das propriedades do Semiárido têm menos que 10 hectares, e se você somar toda área dessas 65% corresponde a 5,6% da área total do Semiárido. É esse pessoal que está querendo ajuda. Agora, eles são responsáveis pela degradação? Muito. Mas acontece que a área deles é pequena. Aquele pessoal intermediário, dos 100 hectares para baixo, é que está o problema da degradação, então é uma situação muito crítica.

INSA – Como surgiu seu interesse pelo tema e que resultados alcançou em suas pesquisas?
JA – A gente trabalhou lá no Centro de Caprinos durante muitos anos, em 2008 desenvolvemos um trabalho sobre sistemas de produção para a região semiárida. Em 1992 comecei a ouvi falar em sistemas de produção agroflorestal. Na biblioteca do Centro de Caprinos, não tinha nada. Em 1995, fui para a Inglaterra fazer pós-doutorado na Universidade de Reading. Primeiro dia que fui para a Universidade, na biblioteca tinha 25 periódicos só sobre sistemas de produção agroflorestal, aqui na nossa não tinha um artigo. Quando voltei, em 1997, para montar esse experimento, observei a estrutura fundiária e disse: “bom, eu tenho que montar esse experimento para viabilizar ecológica e economicamente essa propriedade dos 10 hectares, que é um tamanho dominante”. Então todas as áreas do sistema agrossilvipastoril com que eu trabalhei montando esse experimento tinham 8 hectares, porque eu queria criar um sistema de produção que o pequeno produtor pudesse usar. Instalamos o sistema com três objetivos básicos: primeiro: fixar a agricultura no terreno, o que quer dizer que o produtor pudesse utilizar aquela área para produção de grãos e não ter que a cada dois anos ir plantar e queimar aquela área que ele preparou, ele vai usá-la durante décadas. Segundo objetivo: deter a degradação, e terceiro objetivo, melhorar a renda e a qualidade de vida dos agricultores. Os resultados foram alcançados. O sistema esteve em andamento durante uns 18 anos. E mostrou o seguinte: que pode fixar a agricultura. Aquele pedaço de terra que eu preparei em 1998 até 2010 estava produzindo o equivalente a quase 3 vezes a média da região, sem ter trazido nada de fora, o mais importante é isso, ninguém nunca usou um grama de inseticida comercial ou de adubo químico, tudo foi manejo dentro do sistema, tudo potencial do próprio sistema.

Entrevista do Insa – Instituto Nacional do Semiárido, publicada no Portal EcoDebate, 29/06/2015

A luta pela água não pode acabar; ela é permanente


Transformações no semiárido brasileiro: “A luta pela água não pode acabar; ela é permanente”. Entrevista especial com Glória Araújo

 

“É importante fortalecer a agroecologia no semiárido, porque a metade dos agricultores brasileiros está na região”, diz a coordenadora executiva da Articulação Semiárido Brasileiro – ASA.

 

Foto: www.webpiaui.com.br
 

Na última década, a instalação de cisternas que permitem a captação da água da chuva garantiu que 85 mil famílias do semiárido passassem não só a teracesso à água para o consumo humano, mas pudessem produzir seus próprios alimentos. “A água utilizada para a produção de alimentos vem transformando a paisagem do semiárido”, diz Glória Araújo à IHU On-Line.

 

Antes de iniciativas como essa, que foram desenvolvidas através do Programa Um Milhão de Cisternas, “a realidade das famílias agricultoras do semiárido brasileiro era marcada pela dificuldade do acesso à água. Essas famílias, principalmente as mulheres e as crianças, caminhavam mais de seis quilômetros para pegar água em grandes propriedades”, lembra.

De acordo com a coordenadora executiva daArticulação Semiárido Brasileiro – ASA pelo estado da Paraíba, entre as mudanças que têm chamado atenção nos últimos anos no semiárido, destaca-se a queda nosprocessos migratórios do campo para a cidade. “No Nordeste houve inclusive um retorno ao campo justamente porque as pessoas passaram a ter água. Mesmo num período de estiagem não houve uma migração brusca do campo para a cidade”, informa. Apesar dos avanços dos últimos anos, frisa, “é preciso implementar políticas públicas para a população do campo, porque não podemos nos iludir achando que somente as cisternas vão resolver todos os problemas do semiárido”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Glória comenta ainda algumas das principais mudanças que tem evidenciado na região na última década, com destaque para o desenvolvimento da produção agroecológica, através do cultivo de sementes locais, que envolve 12.800 famílias. “Fizemos um mapeamento das sementes que estão sendo conservadas, diversificadas e usadas pela agricultura familiar e chegamos a identificar que o patrimônio genético do semiárido é fantástico. Esse trabalho da valorização das sementes locais é algo importante para que o semiárido seja dinâmico e para que as populações camponesas possam viver melhor. Nesse sentido, água, semente e terra são questões fundamentais”, pontua.

Glória Araújo é coordenadora executiva da Articulação Semiárido Brasileiro – ASA pelo estado da Paraíba.

Confira a entrevista.

 

Foto: patacparaiba.blogspot.com.br
 

IHU On-Line – Qual tem sido o impacto do programa de cisternas na transformação do semiárido? Pode nos apresentar um balanço de qual era a situação do semiárido antes da implantação das cisternas e como essa realidade mudou?

 

Glória Araújo – Antes desse programa a realidade dasfamílias agricultoras do semiárido brasileiro era marcada pela dificuldade do acesso à água. Essas famílias, principalmente as mulheres e as crianças, caminhavam mais de seis quilômetros para pegar água em grandes propriedades. A partir da concretização desse programa, quando a Articulação Semiárido Brasileiro – ASAapresentou a proposta da instalação das cisternas para a sociedade e para o governo a fim de atender as populações difusas do semiárido, essas famílias passaram a ser beneficiadas pelo Programa 1 milhão de Cisternas e passaram a ter, ao lado da casa, acesso à água de qualidade. As cisternas têm capacidade de armazenar 16 mil litros de água e podem atender uma família de até cinco pessoas durante um período prolongado de estiagem. Os últimos seis anos foram um período de violento processo de estiagem, e muitas vezes não choveu o suficiente para abastecer as cisternas, mas mesmo assim as famílias tiveram acesso à água em casa, algo que antes não tinham.

Além do acesso à água para o consumo humano, desde 2007 estamos trabalhando para que as pessoas tenham acesso à água para a produção de alimentos: trabalhamos com cisternas com capacidade para 52 mil litros de água, que são construídas nos quintais das casas e têm os transformado em locais de produção de alimento. As mulherestêm um papel importante nesta atividade, porque agora não só produzem suas plantas medicinais, como também reproduzem suas sementes e criam aves. Nesse sentido, a água utilizada para a produção de alimentos vem transformando a paisagem do semiárido. Hoje, já foram feitas cerca de 800 mil cisternas pela ASA e também por outras organizações e pelo governo do Estado, que tem incorporado a tecnologia de cisternas de placas da ASA. Nesse sentido, cerca de 85 mil famílias do semiárido já têm acesso à água para a produção de alimentos e isso está transformando a vida das pessoas, porque agora elas não só têm água para consumir, mas também para produzir alimentos.

Também desenvolvemos junto aos agricultores um trabalho de gestão da água para o consumo e para a produção de alimentos. Isso tem trazido impactos incríveis na vida das pessoas não só porque elas passam a ter acesso à água, mas porque conseguem produzir uma diversidade de alimentos sem uso de agrotóxicos. Esses alimentos passam a ser consumidos pelas famílias e, mesmo em momentos de estiagens, elas têm conseguido vender seus alimentos no mercado da comunidade ou nas feiras locais, além de terem uma parceria com o Programa Nacional de Alimentação Escolar. Chama a atenção que, mesmo no período de seca, em 2014 foram organizadas quatro feiras, que oferecemprodutos agroecológicos produzidos pelas famílias.

"Mesmo no período de seca, em 2014 foram organizadas quatro feiras, que oferecem produtos agroecológicos produzidos pelas famílias"

IHU On-Line – Uma das reivindicações da ASA era a instalação das cisternas de placa e não as de plástico, conforme havia sido sugerido pelo governo federal há alguns anos. Hoje se investe mais em qual tipo de cisterna?

Glória Araújo – Hoje diminuiu o número de cisternas de plástico, porque fizemos um movimento contrário a essa tecnologia, justamente porque ela vem de fora, tem um preço mais elevado e os agricultores ficariam dependentes da empresa que comercializa esse tipo de cisterna caso ocorresse algum problema. Além disso, a construção das cisternas de placa fomenta o comércio local.

IHU On-Line – Além do avanço em relação ao acesso à água, quais são as principais dificuldades que a população do semiárido ainda enfrenta quando se trata de ter acesso à água?

Glória Araújo – Apesar do avanço, ainda é preciso construir mais cisternas para que toda a população do semiáridopossa ter acesso à água, e não apenas para o consumo humano, mas também para poderem plantar seus alimentos. 

Um dado que tem nos chamado a atenção é que embora tenha esse processo migratório do campo para a cidade, noNordeste houve inclusive um retorno ao campo justamente porque as pessoas passaram a ter água. Mesmo num período de estiagem não houve uma migração brusca do campo para a cidade. Tendo em conta esse cenário, é preciso implementar políticas públicas para a população do campo, porque não podemos nos iludir achando que somente as cisternas vão resolver todos os problemas do semiárido. Elas têm um papel importante no acesso à água, mas também é preciso olhar para as bacias hidrográficas, para as águas subterrâneas, os mananciais, ou seja, é preciso de políticas públicas que levem em conta o conjunto do meio ambiente. Isso faz com que se tenha um olhar mais sistêmico e integrado, ou seja, temos de olhar para as diversas formas de ter e garantir o acesso à água nosemiárido. A luta pela água não pode acabar; ela é uma luta permanente.

Para se ter uma ideia, em alguns locais ainda não conseguimos instalar as tecnologias desenvolvidas pela ASA, porque algumas famílias não têm espaço em seus territórios para construir uma cisterna-calçadão de 200 metros. Então, a luta pela terra é algo importante para transformar a situação do semiárido.

IHU On-Line – Que tipos de políticas públicas seriam fundamentais para garantir a melhor qualidade de vida no semiárido e o desenvolvimento da região? O que tem sido feito em termos de outras políticas?

Glória Araújo – Primeiro temos que entender que o semiárido não é aquele lugar que muitas vezes é apresentado como um local de terra rachada, de vida seca. O semiárido tem um potencial muito grande e uma diversidade enorme que pode ser vista na Caatinga. Temos de olhar para essa potencialidade e capacidade naturais e humanas, ou seja, é preciso olhar o semiárido com outra lente: como um local que tem vida e capacidade de transformá-lo num local digno para se viver.

Entre os programas que vêm sendo realizados junto ao BNDES, destaco o Programa Sementes do Semiárido, que valoriza as variedades de sementes locais. Esse projeto será finalizado neste mês de maio, mas durante seu desenvolvimento conseguimos trabalhar com 640 bancos de sementes e 12.800 famílias. Fizemos um mapeamento das sementes que estão sendo conservadas, diversificadas e usadas pela agricultura familiar e chegamos a identificar que o patrimônio genético do semiárido é fantástico. Esse trabalho da valorização das sementes locais é algo importante para que o semiárido seja dinâmico e para que as populações camponesas possam viver melhor. Nesse sentido, água, semente e terra são questões fundamentais.

Também são desenvolvidas políticas voltadas para a agricultura familiar para que os agricultores possam vender seus produtos orgânicos, porque em geral eles não usam nem agrotóxicos nem sementes transgênicas; há um entendimento de que a agricultura se faz numa relação harmônica entre o homem e a natureza. Então, é importante fortalecer a agroecologia no semiárido, porque a metade dos agricultores brasileiros está no semiárido. Nessa linha, ainda seria preciso desenvolver algumas políticas que possibilitassem trabalhar a questão da produção, da organização da produção, do acesso ao mercado, a exemplo do Programa Nacional de Alimentação Escolar, que compra a produção das famílias e a repassa para as escolas.

É importante ressaltar que algumas políticas foram bastante importantes para o semiárido, como o Programa Bolsa Família, que transformou a vida das pessoas não no sentido de elas ficarem dependentes do programa, mas, ao contrário, de elas terem condições de iniciar uma produção e passarem a ter acesso a créditos. As pessoas que recebem o Bolsa Família são trabalhadoras, vivem da agricultura, e esses programas sociais são um apoio a elas, porque à medida que acessam renda, deixam de precisar dos programas. De modo que se pode dizer que esses programas sociais também deram uma contribuição para a transformação do semiárido. Agregando isso à política de acesso à água e às sementes, foram colocados novos elementos para que essas famílias vivessem em melhores condições.

"Temos que entender que o semiárido não é aquele lugar que muitas vezes é apresentado como um local de terra rachada, de vida seca"

 

IHU On-Line – Como a transposição do rio São Francisco tem sido discutida na região do semiárido, depois de 85% das obras já estarem concluídas na Paraíba e de o governo sustentar a tese de que a transposição garantirá a segurança hídrica na região?

Glória Araújo – A transposição poderá trazer vantagens, mas será para um segmento social específico, e não para a população deagricultores, indígenas e quilombolas que vivem no semiárido, porque a água não vai chegar a essas populações. Nós temos muitas críticas à transposição, porque a história brasileira mostra que quando se investe em grande obras, elas não servem para atender ao grande público. Sem falar que essas obras não levam em conta os limites da própria natureza, porque a transposição vai trazer transtornos para o velho Chico, considerando que muitos estudos demonstram que a transposição causará impactos ambientais para o rio.

Outra crítica que fazemos à transposição é em relação aos altos recursos que são utilizados para realizar a obra. Se esse dinheiro fosse utilizado para desenvolver outras políticas, seria possível atender a um público bem maior e mais pobre.

IHU On-Line – Com uma possível mudança de governo, vislumbra alguma mudança na continuidade da implantação das cisternas no semiárido?

Glória Araújo – O novo governo está desmontando o Estado brasileiro e as conquistas sociais também serão desmontadas. Desde o período da colonização até hoje, foram poucos os governos que de fato trabalharam com as populações excluídas. Nos últimos 12 anos houve mudanças para o povo excluído, e as organizações da sociedade civil terão de denunciar e lutar pela continuidade de direitos daqui para frente.

Por Patricia Fachin

Fonte: IHU 

Os retrocessos no Semiárido Brasileiro


Os retrocessos no Semiárido Brasileiro, artigo de Roberto Malvezzi (Gogó)

cisterna

 

[EcoDebate] Vários retrocessos vieram junto com o governo interino desde o primeiro dia. Um ministério do tempo do Brasil Império – só homens de bens e brancos, sem negros, mulheres e indígenas -, o anúncio do corte na saúde, na educação, encolhimento do SUS, desvinculação do salário dos aposentados em relação ao salário mínimo, eliminação do MINC, daí prá frente.

Dentre esses retrocessos os que mais impactam o Semiárido são o da educação, saúde e a desvinculação do salário mínimo, do qual dependem aproximadamente 100 milhões de brasileiros.

Porém, há retrocessos que o Brasil em geral não vê, a não ser nós que moramos por aqui, na busca de vida melhor para a população nordestina que sempre esteve à margem dos avanços brasileiros.

O paradigma da “convivência com o Semiárido”, ganhou carne com os programas “Um Milhão de Cisternas” (P1MC) e o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), da ASA. O primeiro visando a captação da água de chuva para beber e o segundo para produzir.

Em aproximadamente 15 anos 1 milhões de famílias recebeu a cisterna para beber e cerca de 160 mil famílias uma segunda tecnologia para produzir. É lindo, até emocionante, quando em plena seca vemos espaços tomados de verde com hortaliças ao redor de uma cisterna de produção. Essas tecnologias ainda teriam que ser replicadas ao milhões para garantir a água para beber e produzir, ofertada gratuitamente pelo ciclo das chuvas.

Junto com esses programas veio a expansão da infraestrutura social da energia, adutoras simples, telefonia, internet, melhoria nas habitações rurais, estradas, etc.

A valorização do salário mínimo e o Bolsa Família injetaram dinheiro vivo nos pequenos municípios, movimentando o comércio local, o maior beneficiário desses programas.

Houve também contradições profundas, como a opção pela mega obra da Transposição de Águas do São Francisco ao contrário de adutoras simples e a implantação das cisternas de plástico por Dilma no seu último governo. Além do mais, ela estava encerrando o programa de cisternas para beber, alegando que já tinha atingido o número de famílias necessitadas.

Detalhe, o ministro para o qual ela liberou as cisternas de plástico, orientou o filho para votar contra ela na Câmara dos Deputados e agora ele é ministro das Minas e Energia.

Mas, esse avanço pressupôs a organização da sociedade civil articulada na ASA e a chegada ao poder de governos estaduais menos coronelísticos e corruptos. Sobretudo, supôs o apoio do governo federal a esses programas da sociedade civil.

Acabou. Se perguntarem ao atual presidente onde fica o Semiárido Brasileiro, é provável que ele diga que fica no Marrocos. Como não tem base na região, vai entrar pelas mãos dos velhos coronéis ou de seus descentes.

Não é possível destruir a infraestrutura construída. Ela tornou o Semiárido melhor, sem fome, sem sede, sem migrações, sem mortalidade infantil. Mas, há muito ainda a ser construído para não haver mais retorno ao ponto da miséria. Uma delas é a geração de energia solar de forma descentralizada, a partir das casas. Dilma não quis dar esse passo.

Os velhos problemas poderão voltar? No que depender das políticas públicas federais, sem dúvida nenhuma. Quem está no poder não enxerga o Semiárido.

Tempos estranhos, quando setores da sociedade brasileira preferem retroceder aos tempos da miséria total e parte da população se alegrar com esses retrocessos.

Roberto Malvezzi (Gogó), Articulista do Portal EcoDebate, possui formação em Filosofia, Teologia e Estudos Sociais. Atua na Equipe CPP/CPT do São Francisco.

 

in EcoDebate, 19/05/2016

Desmatamento silencioso da Caatinga


Desmatamento silencioso da Caatinga tem intensificado a desertificação do semiárido brasileiro. Entrevista especial com Iêdo Bezerra de Sá

 

“O semiárido todo tem um milhão de km², então cerca de 10% a 15% dessa área está numa situação de severidade muito grande”, adverte o pesquisador da Embrapa.

 

Foto: diariodonordeste.com.br
 

Mais de 50% das áreas do semiárido brasileiro já “estão com processo de desertificação acentuado”, e cerca de 10 a 15% do território enfrenta uma situação de desertificação severa. Para se ter uma ideia, a soma das extensões de terras degradadas no Ceará, na Bahia e em Pernambuco equivale a “63 mil km²” de desertificação, informa Iêdo Bezerra de Sá, na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone.

 

O pesquisador explica que a desertificação é um fenômeno dedegradação ambiental que acontece particularmente em regiões áridas, semiáridas e subúmidas secas, a exemplo do Nordeste e de parte do Sudeste brasileiro.

De acordo com o engenheiro florestal, no Brasil adesertificação no semiárido tem se agravado por causa dodesmatamento na Caatinga. “Ao desmatar a Caatinga, os solos ficam completamente expostos a todas as intempéries”, frisa. Além do desmatamento, Bezerra de Sá enfatiza que a irregularidade das chuvas contribui para que a degradação seja ainda mais acentuada em algumas regiões. “Há locais, por exemplo, aqui onde estou agora, em Petrolina — que é no extremo oeste de Pernambuco —, em que chove 450 a 500 milímetros por ano. O grande problema é essa irregularidade das chuvas: elas caem de forma muito concentrada, chove muito em pouco tempo, ou seja, os 500 milímetros se concentram em apenas dois, três meses e, às vezes, 20%, 30% da chuva do ano cai em apenas um dia”.

Ele informa ainda que o maior polo de produção de gesso do país, localizado em Araripe, no Ceará, responsável pela produção de 95% de todo o gesso produzido no país, utiliza energia de biomassa, mas aproximadamente “50% dessa energia é oriunda de desmatamentos ilegais e clandestinos. O governo sabe disso, as autoridades sabem disso e estamos com um trabalho muito importante de conscientização dessas empresas que utilizam biomassa na sua matriz energética”. Entre as soluções para tentar reduzir a desertificação, o pesquisador chama atenção para a necessidade de investir em planos de manejo florestal sustentável para a Caatinga, de modo a utilizar o bioma de “forma contínua e sustentável” e recuperar as áreas degradadas, que levam de 30 a 40 anos para serem regeneradas.

Iêdo Bezerra de Sá é graduado em Engenharia Florestal pela Universidade Federal Rural de Pernambuco, mestre em Sensoriamento Remoto pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e doutor em Geoprocessamento pela Universidad Politécnica de Madrid. Atualmente é pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa.

Confira a entrevista.

 

Foto: Agência Alagoas
 

IHU On-Line – O senhor tem chamado atenção para o fato de que a desertificação é avançada em mais de 20 núcleos do Semiárido. Em que consiste esse fenômeno?

 

Iêdo Bezerra de Sá – Desertificação é um termo utilizado pela UNCCD, que é a sigla em Inglês de Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos das Secas, que trata da degradação ambiental em regiões áridas, semiáridas e subúmidas secas. Então, podemos utilizar o termo desertificação somente em regiões que têm essa climatologia. No Brasil essa situação se encontra no Nordeste e em parte do Sudeste, ou seja, noNorte de Minas Gerais. Isso significa dizer que só podemos utilizar o termo “desertificação” para nos referirmos a essas regiões. Por exemplo, não se pode utilizar o termo para tratar de um problema sério que há no Rio Grande do Sul, ou para indicar a situação de uma área muito grande em Roraima ou em Rondônia, porque elas não estão nessa situação climática de aridez ou de semiaridez.

No caso do Brasil, no semiárido encontra-se uma área de aproximadamente um milhão de km², ou seja, trata-se de área muito grande em termos de espacialidade. Para se ter uma ideia, essa extensão equivale a duas vezes o tamanho de Espanha e Portugal juntos. Quando falamos isso na Europa, as pessoas reagem de forma apreensiva por se tratar de uma área muito grande. Agora, desertificação não é um termo binário, branco ou preto, porque existe uma gradação.

Na Embrapa fazemos um mapeamento que demonstra uma gradação que vai de uma desertificação muito baixa até uma degradação moderada, acentuada e severa, porque há lugares que são muito preocupantes, que têm uma severidade do processo muito forte, enquanto em outros lugares a degradação é mais branda. O que temos de fazer é tentar frear os vetores de crescimento dessas áreas, e para isso desenvolvemos algumas tecnologias, as quais são transferidas para as regiões que percorremos.

Retirada da cobertura vegetal

No Brasil, esse processo começou justamente por conta da retirada da cobertura vegetal florestal; em outras palavras, por causa do desmatamento. O desmatamento da Caatinga gerou todo esse processo, porque ao desmatar aCaatinga os solos ficam completamente expostos a todas as intempéries: há uma insolação muito forte, de mais de duas mil horas/ano de sol, e um regime de chuvas muito complicado, porque não é a questão de quantidade de chuvas, mas sim a sua irregularidade na distribuição.

Há locais, por exemplo, aqui onde estou agora, em Petrolina — que é no extremo oeste de Pernambuco —, em que chove 450 a 500 milímetros por ano. Essa quantidade foi verificada em uma série histórica de mais de 30 anos de acompanhamento dos regimes de chuvas. O grande problema é essa irregularidade das chuvas: elas caem de forma muito concentrada, chove muito em pouco tempo, ou seja, os 500 milímetros se concentram em apenas dois, três meses e, às vezes, 20%, 30% da chuva do ano cai em apenas um dia. Isso gera um fator de degradação muito forte. Aliado a isso, não só no semiárido do Brasil, mas no semiárido do mundo inteiro, os solos de fertilidade natural são baixos. Não é que não existam solos bons no semiárido, ao contrário, mas o que predomina aqui na região são solos de baixa fertilidade natural, são solos rasos, são aqueles com pouca profundidade. Ou seja, quando se começa a cavar, logo se chega à rocha que formou esse solo, e esse também é um fator muito severo da desertificação.

Climatologia e solo

Quando associamos essa climatologia à questão de solos, que são condições naturais, e acrescentamos o fator humano imposto a este ambiente, aí se exacerbam e se aceleram esses processos ruins de desertificação. Esse é o contexto em que vivemos hoje no semiárido. Estamos tentando reverter toda a parte que é induzida pelo homem, porque não temos muita governabilidade sobre a natureza.

IHU On-Line – Esses 20 núcleos do semiárido que enfrentam essa situação de desertificação correspondem a que percentual do semiárido?

Iêdo Bezerra de Sá – Mais de 50% das áreas do semiárido brasileiro já estão com processo de desertificação acentuado e aproximadamente 16 mil hectares da Caatinga já foram desmatados. Além disso, alguns núcleos noCeará, na Bahia e em Pernambuco estão com as áreas bastante comprometidas. Para se ter uma ideia, somando a área desses municípios, o desmatamento está em torno de 63 mil km², isso significa que se trata de uma área que equivale a quase a extensão de Pernambuco, que tem 100 mil km². O semiárido todo tem um milhão de km², então cerca de 10% a 15% dessa área está numa situação de severidade muito grande. E, se formos completar isso com a parte que fica um pouco mais acentuada e moderada, o percentual ultrapassa os 50% do semiárido.

Temos ainda situações muito degradantes na região Sul do Piauí, região de Gilbués, e em Pernambuco tem um cenário muito ruim na região de Cabrobó e Salgueiro. Também tem uma área grande, entre a Paraíba e o Rio Grande do Norte, onde há um conjunto de municípios — doze ou dez — em condições precárias. Então, quando falamos em20 núcleos, é apenas uma questão didática, porque na realidade a área se estende a uma extensão muito maior do que isso. Como vimos, é mais de 50% de uma região bastante comprometida.

Estamos fazendo alguns estudos para verificar essa situação estado por estado, a fim de ver a situação de cada um deles. Estamos concluindo um trabalho em Pernambuco, o qual será publicado no máximo em outubro deste ano.Pernambuco tem 185 municípios, dos quais 122 estão em situações que têm problemas de desertificação. Estamos ranqueando esses dados e verificamos que alguns municípios têm praticamente toda a sua área com um processo bastante acentuado ou severo de desertificação. Então, frear essa degradação é a grande dificuldade, porque custa muito capital humano e também financeiro, e leva tempo para fazer.

Além disso, as propriedades familiares maiores passam a ser subdivididas, então a pessoa tem três, quatro, cinco, seis filhos e depois essa área é desmembrada e passa para os filhos. Isso também é um fator de degradação, porque as pessoas tendem a tirar sua sobrevivência da base de recursos naturais de sua propriedade. Assim, a primeira coisa que fazem é desmatar uma área para plantar e esse plantio vem sendo feito de forma desordenada, sem tecnologia, sem insumos agropecuários adequados, em ambientes também inadequados, e esses fatores geram um processo de retração muito intenso.

Frear isso é um pouco mais complicado, porque se trata de um problema social, por isso a Embrapa tem uma unidade encravada no coração do semiárido, na cidade de Petrolina, para tentar desenvolver algumas tecnologias que possam minimizar — sabemos que erradicar é praticamente impossível — esse manejo equivocado que se faz do recurso natural. Um grande problema nosso é a questão do desmatamento, seguido de queimada, porque o agricultor do semiárido é descapitalizado: ele não tem acesso à tecnologia nem a crédito. Por isso, eles se utilizam do meio que podem, ou seja, desmatam e queimam áreas, e queimar área é um crime ambiental e é dar um “tiro no próprio pé”, porque o semiárido de um modo geral é pobre, o solo é pobre em matéria orgânica. E se está sendo queimado o pouco de matéria orgânica que já existe, isso realmente é muito ruim. Queimam para limpar o terreno, na ilusão de que a produtividade será melhor em função da queima, mas esse é um erro e estamos sempre tentando corrigi-lo.

matéria orgânica do solo é o que mais comporta a retenção de água. Assim, um dos grandes problemas do semiárido é a questão da água. Se, em um solo que recebe pouca água, parte da vegetação é queimada, o solo fica ainda mais empobrecido de matéria orgânica e, por conseguinte, retém mais água. Esse tipo de informação, que está um pouco defasada no Brasil, tem de chegar ao produtor rural, porque às vezes ele age de forma errada por ignorância, ou às vezes porque não tem outra forma de fazer, e às vezes até por má-fé.

"Pernambuco tem 185 municípios, dos quais 122 estão em situações que têm problemas de desertificação"

 

IHU On-Line – Qual a causa de a desertificação ser mais intensa nesses 20 núcleos do Semiárido e quais são eles? Como se chegou a essa situação?

Iêdo Bezerra de Sá – Nós chegamos a essa situação em função da primeira causa, que é o desmatamento, ou seja, a retirada da cobertura, principalmente da cobertura florestal, porque é ela quem protege o substrato do solo de todas as intempéries. Além disso, o sobrepasteio dessa vegetação contribui para esse fenômeno. Depois, há o problema do manejo que é dado a esse solo, com plantações inadequadas, sem fazer o terraceamento, sem conter a erosão. Quando a cobertura é retirada e as chuvas são de alta intensidade, embora poucas ao longo do ano, acontece um processo de carreamento do solo. Portanto, isso provoca um tipo de erosão laminar, que degrada bastante essas áreas, porque vai retirando lâminas do solo: a cada ano vai um milímetro, por exemplo, e as pessoas não percebem isso, mas no passar de 10 anos houve a perda de 10 milímetros, o que equivale a um centímetro do solo.

É necessário manter o máximo possível da vegetação, proteger esse solo, plantar corretamente nos lugares certos, com a cultura certa e com o manejo certo. Isso é fundamental para que se evite esse processo de desertificação, não só aqui, mas em qualquer região que tenha essa climatologia e também esse tipo de solo.

IHU On-Line – De que maneira a desertificação acaba impactando na vida das pessoas que vivem no semiárido?

Iêdo Bezerra de Sá – Considero a desertificação como um jogo de dominó, em que uma causa empurra a outra e, no final da ponta, quem mais se prejudica é o homem que vive no semiárido. Em um passado não muito longínquo, existia o êxodo do nordestino que saía da sua terra para ir para o Sudeste, o Centro-Oeste e às vezes até para o Sul, ou então para as capitais, em busca de emprego, renda e de manter a sua vida, porque a terra dele ficou de um jeito tão improdutivo que não conseguiu mais rendimentos para sustentar a família. Esse processo vem diminuindo gradativamente de uns 50 anos para cá, mas ainda acontece. No entanto, o êxodo agora não é mais para o Sudeste, para o Sul, para o Centro-Oeste; as pessoas estão indo para os polos de desenvolvimento que existem no próprio Nordeste, que absorvem muita mão de obra.

Na cidade de Petrolina, onde estou, tem o maior polo de fruticultura irrigada do Brasil. Cidades como Feira de Santana, na Bahia, tem um polo muito grande também, tanto de pecuária quanto de serviços. Campina Grande, na Paraíba, Juazeiro do Norte, no Ceará, também são outros polos que absorvem muita mão de obra. Por força da desertificação, chamamos essas pessoas que migram para as regiões do Nordeste de “refugiados ambientais”.

IHU On-Line – Qual o risco de esse processo de desertificação se espalhar para outros pontos do semiárido?

Iêdo Bezerra de Sá – O risco é iminente. Por isso o governo, através do Ministério do Meio Ambiente, elaborou umPlano de Ação Nacional de Combate à Desertificação. Esse é um plano nacional que foi desenvolvido pelo Ministério do Meio Ambiente, com o apoio de diversos órgãos de governo e também da sociedade civil, entre eles o Ibama, aANA e a Embrapa. Por força deste programa, foram instituídos os programas estaduais, que são chamados de Planos de Ações Estaduais – PAES. Na realidade, quem mais conhece sua situação de desertificação é o próprio estado e, às vezes, o próprio município, por isso é preciso ir até a ponta. Cada estado do Nordeste que padece desse problema elaborou seus programas e alguns já criaram leis. Então, a ideia é dotar esses estados e, por conseguinte, os municípios de algumas práticas e tecnologias que vão diminuindo e minimizando esse problema. A governança da desertificação passa, justamente, por esses programas que saem da esfera federal e chegam até o município, ensinando o que se deve e o que não se deve fazer para acelerar esse processo de desertificação.

No passado, o problema era muito maior, no entanto, após o advento desses programas, estamos minimizando a situação pouco a pouco. Já estamos conseguindo identificar esses processos de desertificação mais intensos e colocá-los na esfera municipal, que é onde acontecem as ações. Também estamos atualizando informações sobre a desertificação para que os estados possam priorizar os investimentos, pois não temos muitas pessoas trabalhando com essa questão e precisamos de mais pessoas para poder equacionar essa situação.

A forma de frearmos um pouco esse processo é com tecnologia e com informação, dizendo o que fazer, como fazer, onde fazer, quanto custa e, às vezes, intensificando um processo de fiscalização, de sensibilização e também de penalização das pessoas que estão fazendo as coisas erradas, pois também existe um segmento empresarial muito forte no Nordeste, que vive deste produto da desertificação e do desmatamento, porque utilizam muita madeira, lenha e carvão em suas matrizes energéticas, e de forma insustentável. Então, essa é uma forma também de pressioná-los para que possam fazer a coisa certa e para que não degradem ainda mais o ambiente. Existe uma legislação pertinente para que possamos controlar esse quadro, e com esse controle iremos conter um pouco o avanço do processo de desertificação por todo o semiárido brasileiro.

IHU On-Line – Em que consiste o Plano Nacional de Combate à Desertificação? Por que ele não tem sido efetivo no semiárido?

Iêdo Bezerra de Sá – O plano foi publicado em 2005. Essa alternância da governabilidade do plano impede que muitas ações sejam levadas a cabo, e creio que esse é um fator muito importante. Ao invés de se fazer um plano de governo, deveria ser feito um plano de Estado, um plano que realmente pudesse incentivar, ter recursos financeiros e humanos destinados para isso, e que fosse um objeto realmente mais eficaz e eficiente, mas infelizmente isso não acontece.

Em geral esses planos fazem parte de uma política partidária que, às vezes, causa um pouco de angústia nas pessoas que trabalham com o assunto, porque vemos tanta coisa sendo construída, as quais não são efetivadas do modo como gostaríamos. Nós, enquanto instituição, temos um limite de fazer a parte de pesquisa, de demonstrá-la, de divulgar as tecnologias disponíveis, mas temos uma limitação, só podemos chegar até uma esfera de execução de algumas atividades, porque a partir daí foge da nossa alçada como empresa de pesquisa.

"Enquanto na Amazônia e no Cerrado os desmatamentos são de grandes extensões, na Caatinga o desmatamento é feito de forma muito particular"

IHU On-Line – Que fatores têm levado a Caatinga a sofrer um processo de degradação e como esse processo contribui para a desertificação do semiárido?

Iêdo Bezerra de Sá – O que mais contribui para que isso ocorra é exatamente a derrubada da Caatinga. A energia no Brasil está muito cara, e no semiárido, em particular, há muitas empresas que precisam de energia e que utilizam aenergia de biomassa. Ocorre que esse tipo de energia é exatamente o produto da derrubada e do desmatamento da Caatinga.

Hoje o Ibama, em nível federal, e os estados, com suas secretarias de meio ambiente e suas agências, estão tentando controlar para que esse processo de utilização da lenha e do carvão não seja realizado de forma não manejada, ou seja, retirado da natureza forma ilegal, clandestina. Para se ter uma ideia, como falei no início da nossa conversa, entre 2002 e 2008 foram desmatados aproximadamente 16 mil Km². Se multiplicarmos esse valor por 100, teremos o resultado dessa área por hectares. No intervalo de apenas seis anos foi destruído praticamente 20% de todo o estado de Pernambuco, por exemplo. Isso é muito sério e por isso precisamos frear esse desmatamento ou incentivar, coisa que já está sendo feita, a realização de planos de manejo florestal da Caatinga.

O que é um plano de manejo florestal sustentável da Caatinga? São planos elaborados por equipes de engenheiros florestais, em que a vegetação da Caatinga é utilizada de forma contínua e sustentável. Dependendo do lugar em que já foi desmatada, a Caatinga pode levar de 30 a 40 anos para se regenerar. Assim, os estudos de manejo vieram para isso.

Aqui na região, onde existe o maior polo de gesso do Brasil, na região do Araripe, se produz 95% de todo o gesso do Brasil, seja gesso para forro, para divisória, para construção civil, para uso ortopédico. Para transformar o minério em gesso, é preciso desidratá-lo — o termo usado é calcinar — e para isso se utiliza energia, sendo que a mais utilizada é a de biomassa, e mais de 50% dessa energia é oriunda de desmatamentos ilegais e clandestinos. O governo sabe disso, as autoridades sabem disso e estamos com um trabalho muito importante de conscientização dessas empresas que utilizam biomassa na sua matriz energética.

Há uns três anos existiam poucos planos de manejo, da ordem de 12, 14 planos de manejo florestal e hoje eles passam de 300. Então, energia, se for de forma sustentável, é muito boa para a natureza e para o homem também, porque ela é legalizada, gera um melhor rendimento porque é padronizada, ou seja, tem uma série de vantagens que concorrem para que esses planos sejam mais ampliados.

IHU On-Line – Que medidas são necessárias para reverter esse processo de desertificação?

Iêdo Bezerra de Sá – O monitoramento, que está sedo executado, do desmatamento da Caatinga, é fundamental. Verificamos que a Amazônia, a Mata Atlântica e até o Cerrado têm muita visibilidade no cenário nacional e internacional, mas a Caatinga tem menos visibilidade. Por isso, é necessário monitorar, ver onde estão ocorrendo os problemas e fazer ações mais efetivas. Acredito que assim conseguiremos mostrar, inclusive na mídia nacional, como está sendo feito esse controle. Queremos dar visibilidade para a Caatinga e talvez seja um pouco mais difícil, porque enquanto na Amazônia e no Cerrado os desmatamentos são de grandes extensões, na Caatinga o desmatamento é feito de forma muito particular. É o que chamo de desmatamento “formiguinha”, ou seja, não tem uma frente contínua de desmatamento que é vista em uma imagem de satélite com muita facilidade, como se vê na Amazônia e no Cerrado. Então, queremos monitorar esse desmatamento.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Iêdo Bezerra de Sá – O interessante é que cada estado da nossa Federação que está sendo afetado pelo problema tenha seus Planos de Ações Estaduais. Precisaríamos que os órgãos que estão encarregados da execução desses planos, dentro dos estados, ou seja, as secretarias de meio ambiente e as agências, gerências ou institutos de pesquisa ambientais que estão dentro dos municípios, sejam fortalecidos e dotem esses organismos de dinheiro e de pessoas para que possamos fazer um trabalho mais eficiente e rápido, porque a degradação ocorre em velocidade sempre maior do que a recuperação. Por conta disso, precisamos ser mais proativos nesse sentido.

Por Patrícia Fachin e Leslie Chaves

Fonte: IHU