Panorama dos privilégios no setor dos transportes


Artigo de Washington Novaes

               trânsito

 

[O Estado de S.Paulo] Provavelmente não há tema mais discutido hoje na comunicação brasileira que o da chamada “mobilidade urbana” – tal a gravidade dos congestionamentos de trânsito nas grandes cidades, a deficiência dos transportes públicos, a precariedade do planejamento em toda parte, o contrassenso das políticas públicas que incentivam o transporte individual em lugar do coletivo e agravam os problemas. Mas a discussão é absolutamente necessária e sem ela não avançarão as políticas e as soluções.

A edição mais recente da revista Estudos Avançados, do instituto da Universidade de São Paulo que tem a mesma denominação, traz informações importantes para esse debate – números impressionantes, argumentos, propostas que deveriam ser consideradas pelo poder público.

Pode-se começar pelo texto Mobilidade urbana: um desafio paulistano, do arquiteto e urbanista Jorge Wilheim, autor de planos urbanísticos para várias capitais brasileiras, entre elas São Paulo, Curitiba, Campinas. Ele começa lembrando que em São Paulo ocorrem a cada dia 23,51 milhões de viagens de pessoas que se deslocam principalmente de casa para o trabalho e vice-versa; na Grande São Paulo são 35 milhões. Nada menos que 3 milhões de pessoas se deslocam de seu município para o vizinho. E o autor compara esse quadro com o de pouco mais de um século atrás, quando a cidade de 65 mil habitantes ocupava a colina entre os Vales do Tamanduateí e do Anhangabaú – mas teve de se expandir para o sopé, já que os trens não podiam subir a elevação para transportar os imigrantes do exterior e do Nordeste brasileiro que ocuparam outras áreas. Com pouco mais de um século, chegou-se à “macrometrópole”.

Segundo o autor, “o grave congestionamento de todos os acessos urbanos a rodovias permite antever, em curtíssimo prazo, uma situação caótica de paralisação diária do trânsito à entrada e saída da cidade”. Hoje, na capital, a velocidade média dos automóveis e ônibus é de apenas 22 quilômetros por hora, com congestionamentos de 120 quilômetros. A velocidade média dos veículos sobre rodas caiu para 18,5 quilômetros horários e “aproxima-se da velocidade de um corredor de maratona (20 km/hora) ou de uma carroça puxada por cavalos (26 km/h). E não há como aumentar o espaço para mais 872 veículos novos que a cada dia se juntam à frota. Nas faixas exclusivas, a velocidade média dos ônibus não passa de 36 quilômetros por hora, sem elas cai para 14. Na cidade de São Paulo há 33 mil táxis. E ao todo circulam na cidade 7,49 milhões de veículos automotores.

Mais espantoso ainda é saber que no País, entre 2001 e 2011, o número de automóveis cresceu a taxas mais de dez vezes superiores à do crescimento da população (136% ante 12,2%). Chegamos, segundo o Ipea, a 50,2 milhões de automóveis, 19,9 milhões de motos, 7,9 milhões de outros veículos motorizados. Em São Paulo, são 40 veículos para 100 pessoas; em Curitiba, 44,9.

Pergunta, então, Wilheim: qual será o futuro do automóvel privado? Nos formatos atuais, sua liberdade de circular acabará cerceada, diz ele. O preço de manutenção o tornará “exclusivo de famílias ricas”. Cairá o comércio de veículos. Crescerá o sistema de locação de pequenos veículos urbanos (como já se faz em muitas cidades de outros países). O número de veículos obsoletos levará à implantação de sistemas obrigatórios de reciclagem, como na Suécia e em outros países. O transporte público gratuito – hoje letra quase morta da legislação – poderá exigir uma taxa de contribuição ao descongestionamento, para financiá-lo. Quem sabe, não se exigirá que vereadores e ocupantes de cargos no poder só usem o transporte público para serem estimulados a legislar adequadamente? Quem sabe, impedir-se-á que as tarifas do setor do transporte público aumentem mais de 3,5 vezes além da inflação (como entre 1995 e 2008)?

São números e argumentos importantes para os planejadores. Outros estão em O plano de mobilidade urbana e o futuro das cidades, de Barbara Rubin e Sérgio Leitão, diretores do Greenpeace, que começam lembrando o jornal londrino Times, que em 1894 publicava que, se não houvesse mudança, “em meados de 1950 todas as ruas de Londres estariam soterradas sob 2,5 metros de dejetos de cavalos”. Em Nova York, a “frota” de 200 mil cavalos que por ali circulava gerava a cada dia 2 mil toneladas de dejetos. Hoje, no Brasil, mais de 50% dos domicílios têm automóvel ou moto. São Paulo só perde para Xangai em tempo alto de deslocamento.

As taxas de acidentes com veículos no Brasil (22,5 mortes por 100 mil pessoas) são mais altas que na Índia (18,9), na China (20,5), o dobro dos Estados Unidos (11,4). As perdas no trânsito em São Paulo chegam a R$ 40 bilhões por ano; cada cidadão deixa de ganhar ou aplicar R$ 3,6 mil enquanto preso em congestionamentos. O setor de transporte é o segundo maior emissor de poluentes (7% a 9%); 68% dessas emissões se devem ao transporte individual, 32% ao coletivo. Mas só 3,8% dos 5.564 municípios têm planejamento para a mobilidade urbana, que a legislação exige – embora recursos federais de R$ 90 bilhões tenham ido para o setor em um único ano (2009).

De acordo com os autores, reverter a logística das cidades exigirá forte avanço no transporte público e revisão dos benefícios e incentivos ao transporte individual. Hoje a relação entre benefícios ao transporte individual (redução de IPI, da Cide, do IPVA) e ao transporte coletivo está em oito para um. O IPVA médio de R$ 850 não passa de R$ 2,30 por dia. Há outros argumentos em vários artigos na revista – mas não há espaço para citar todos.

Quem convencerá o poder público a mudar esse quadro, principalmente em vésperas de eleição? Mas os números e argumentos estão aí, nesses ensaios. E não há como contestá-los. Podem levar os não beneficiários dos privilégios a também mudar o quadro eleitoral. Ou ocupar as ruas de novo.

*Washington Novaes é jornalista. E-mail: wlrnovaes@uol.com.br

Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.

Fonte: EcoDebate,