José Eli da Veiga: O debate sobre o Código Florestal continuará


                           

O professor dos programas de pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI/USP), José Eli da Veiga, 63 anos, acompanhou cada debate relacionado ao “novo” Código Florestal publicando uma série de artigos na imprensa brasileira. A compilação desses textos está em seu mais novo livro, dos 20 que já tem publicado: “Os Estertores do Código Florestal”, da Armazém da Cultura. A seguir, acompanhe sua entrevista exclusiva sobre Código Florestal, Cadastro Ambiental Rural (CAR) e propriedades rurais.

Como podemos usar o “novo” Código Florestal ou as ferramentas legais para resguardar as áreas e até recuperar outras?
Não existe mais Código Florestal. Essa lei é um desastre, não houve respeito nenhum às Áreas de Preservação Permanente (APPs), um prejuízo legitimado. Tenho impressão que qualquer agrônomo concordaria que a conservação de área de APP deveria ser considerada indiscutível. Já a Reserva Legal (RL), que toda propriedade precisa ter, é mais discutível. Deveria ser possível fazer a compensação dela. Outro problema do Código Florestal, na tentativa de dizer que estava tentando ajudar o agricultor familiar, foi usar a ideia de imóveis rurais em módulos. Isso favoreceu a especulação imobiliária, pois sítios de lazer se enquadram nesses módulos.

O que se aproveita da Lei Florestal?
Só o CAR, se for implantado com rigor. É um escândalo as propriedades ainda não terem cadastro. No Brasil, praticamente, não se paga imposto por se ter propriedade rural. O CAR ajudará nessa questão, por isso notamos certa resistência a ele. Infelizmente, houve uma derrota de quem era pela sustentabilidade, por conta das contradições e da dificuldade de explicar o problema da Lei Florestal à opinião pública. Por exemplo, uma das coisas mais chocantes, acho que nem citei no livro, é que o empresariado brasileiro meio que quis lavar as mãos.

Por que isso aconteceu?
Ainda hoje me pergunto. Na lista dos 200 maiores grupos, do Valor Econômico, apenas cerca de dez têm agronegócio. Embora não atue na área, o empresário pode ter algum tipo de ligação. Às vezes, ele mesmo é fazendeiro. Outra possível explicação é a complexidade do assunto. Mais grave é o fato de algumas empresas terem conselho de meio ambiente e, mesmo assim, acho que eles nem chegaram a discutir o tema.

Como os negócios no campo podem existir em harmonia com a preservação ambiental?
Planejando. A primeira coisa é procurar respeitar as aptidões da propriedade. Não adianta plantar algo exigente em uma terra que não corresponde. Aliás, estas áreas deveriam ser preservadas, como é o escandaloso caso do cerrado. O mecanismo, neste caso, seria a compensação.

Qual a sua opinião sobre pagamento por serviços ambientais (PSA)?
Estou ainda à procura de experiências concretas que me deem mais clareza. Ainda não acredito que tenha se tornado um incentivo econômico como era a intenção.

Há um questionamento de ordem ética sobre o PSA afirmando que a pessoa vai ser paga para simplesmente cumprir a lei. O que o senhor acha?
É um raciocínio bacana se não estivéssemos em uma sociedade capitalista. Muitos casos só vão andar se assumirem essa lógica de mercadoria. Se for de interesse público, que vire reserva. Como o estado não é capaz de viabilizar a desapropriação de várias áreas, você fica de mãos atadas se for purista.

Muitos autores dizem que para conseguir recompor é necessário tornar a floresta financeiramente viável dentro do capitalismo. O senhor concorda?
Algum tipo de rentabilidade o proprietário deve ter. Agora, se o local é muito importante para sociedade, ele pode deixar de ser privado. Ninguém paga para as reservas florestais, ecológicas e indígenas serem preservadas. São áreas que fogem dessa lógica.

Os jovens estão deixando o meio rural para morar na cidade. Que impacto isso causa na agricultura familiar?
Não é necessariamente negativo que alguém saia do meio rural. Os jovens são forçosamente atraídos a irem para as cidades para estudar e sair de um ambiente familiar geograficamente isolado com a família. A procura por locais com mais escolhas é um progresso. A discussão é se a família rural teve condições de prepará-lo para que possa fazer essa opção. Se ele teve acesso à educação e, além disso, se gosta de agricultura, provavelmente vai procurar algum meio de voltar ou atuar no campo. Não necessariamente no mesmo lugar e nem diretamente.

O desmatamento é pouco palpável para moradores urbanos. Só com educação poderíamos mudar isso?
Eu discordo dessa palavra “só”, porque educação é uma condição absolutamente necessária. E é um processo sociocultural complexo mudar essa situação. Pesam muito as pressões que a sociedade faz sobre o estado como, por exemplo, esse debate todo sobre o Código Florestal. Havia visões estratégicas completamente diferentes e acabou predominando a mais predatória. Temos que ter paciência porque não vai demorar muito para sociedade se dar conta da grande besteira que foi feita, dessa mudança no código. Os especuladores de terra que se disfarçam de agronegócio tiraram vantagem. Vai chegar esse momento, tenho certeza disso e vamos ter outra vez esse debate. Os que perderam, vão ganhar.

 

*Entrevista publicada na revista Plantando Águas, patrocinada pela Petrobras. Baixe a publicação neste link.

Fonte: Iniciativa Verde

Cadastro Ambiental Rural: “Falta prioridade política para a gestão ambiental no campo”.


Entrevista especial com Flávia Camargo de Araújo

 

“A falta de comprometimento do Poder Público com a implantação de um CAR de qualidade é apenas mais um passo desastroso na política ambiental brasileira”, adverte a técnica em Desenvolvimento e Pesquisa Socioambiental do Instituto Socioambiental – ISA.

Cadastro Ambiental Rural – CAR, criado para ser um instrumento de planejamento e monitoramento ambiental das propriedades rurais no sentido de delimitar as áreas preservadas e identificar as que precisam ser reflorestadas, será “meramente declaratório”, adverte Flávia Camargo de Araújo à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail. Segundo ela, “se continuar da forma como está regulamentado, o CAR poderá se tornar uma ferramenta burocrática de regularização dos produtores apenas no‘papel’, e não na realidade do campo”.

Obrigatório a todas as propriedades brasileiras a partir deste ano, o CAR tem recebido muitas críticas dos ambientalistas, pois seu preenchimento poderá ser feito pelo proprietário da terra, e não é obrigatória a “contratação de técnico nem mesmo para a apresentação do projeto de restauração florestal, necessário para a assinatura do termo de compromisso junto ao órgão ambiental”. Na avaliação de Flávia de Araújo, o fato de o CAR “ser declaratório e de dispensar a obrigatoriedade de um técnico, inclusive na fase de assinatura do termo de compromisso, demonstra a falta de prioridade em garantir a qualidade no processo de regularização ambiental. Além disso, há pouca preocupação com o processo de análise e validação do CAR. Não há sequer uma previsão de prazo para essa etapa de verificação do caráter fidedigno das informações”. E rebate: “Teremos cadastros sobre os quais não poderemos ter segurança acerca do caráter real das informações. Isso implica na não efetividade desse instrumento. Poderemos ter áreas que foram declaradas como preservadas sem que estejam sendo de fato conservadas. Poderemos ter erros, negligências ou omissões intencionais nas declarações que geram uma ‘diminuição’ no passivo ambiental em desacordo com a realidade no campo”.

Flávia Camargo de Araújo é Engenheira Agrônoma e mestre em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal de Brasília. Atualmente leciona no curso de Pós-graduação do Uniceub em Análise Ambiental e Desenvolvimento Sustentável e integra o Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental – ISA.

Confira a entrevista. 

IHU On-Line – O que é o Cadastro Ambiental Rural e qual a sua finalidade após a aprovação do Código Florestal?

Flávia Camargo de Araújo – O Cadastro Ambiental Rural – CAR é um instrumento de gestão ambiental que registra os dados sobre o uso do solo da propriedade, delimitando as áreas que estão preservadas, as áreas de uso agropecuário e as áreas que, por terem sido ilegalmente desmatadas, precisam ser reflorestadas. O CAR, quando de qualidade, possibilita o adequado planejamento territorial da propriedade e facilita o monitoramento dos desmatamentos por parte dos órgãos ambientais. O Cadastro Ambiental Rural já existia em alguns estados antes da aprovação da nova legislação florestal. O que a nova lei fez foi instituir oCAR em âmbito nacional, tornando-o obrigatório para todas as propriedades.

IHU On-Line – Como deve ocorrer o processo de registrar as informações ambientais das propriedades rurais que precisam de reflorestamento?

Flávia Camargo de Araújo – De acordo com a nova legislação, todas as propriedades terão o prazo de um ano, prorrogável por mais um, para fazer a sua inscrição no CAR. Esse prazo começou a contar agora em maio, quando oCAR foi lançado oficialmente pelo Ministério do Meio Ambiente – MMA. A forma de registro das informações varia de Estado para Estado.

No sistema lançado pela União, que está sendo adotado pela maioria dos Estados, o registro das informações pode ser feito diretamente pelo proprietário, sem que seja necessário um responsável técnico. Apenas alguns Estados irão exigir a contratação de técnico para a inscrição no CAR.

IHU On-Line – Em que consiste o Decreto nº 8.235/14 e a Instrução Normativa nº 2 do Ministério do Meio Ambiente – MMA?

Flávia Camargo de Araújo – O Decreto 8.235/14 estabelece normas gerais sobre o CAR, os Programas de Regularização Ambiental e estabelece o Programa Mais Ambiente Brasil. A Instrução Normativa nº 2/MMA trata dos procedimentos para a integração dos cadastros no SICAR (Sistema de Cadastro Ambiental Rural) e define procedimentos gerais para o CAR.

Essas normas estavam sendo ansiosamente aguardadas, pois a partir da publicação das duas, o CAR estaria oficialmente lançado. O problema é que as regras definidas tanto pelo decreto como pela instrução normativa mostram que a prioridade é dar celeridade ao processo de cadastramento, ao invés de garantir a eficácia do CARcomo instrumento de planejamento e monitoramento ambiental.

 

“Sem uma orientação técnica dificilmente o CAR terá a qualidade necessária como instrumento de gestão ambiental”

IHU On-Line – Quais são as principais dificuldades envolvendo a implantação do CAR?

 

Flávia Camargo de Araújo – O principal problema é a falta de prioridade política para a gestão ambiental no campo, que se reflete na demora de dois anos para lançar um sistema de cadastramento de bases frágeis. O sistema de cadastro ambiental lançado pelo MMA será um instrumento meramente declaratório, sem o devido apoio técnico. Não será obrigatória a contratação de técnico nem mesmo para a apresentação do projeto de restauração florestal, necessário para a assinatura do termo de compromisso junto ao órgão ambiental.

Levantamento realizado pelo Observatório do Código Florestal demonstra o quanto os órgãos ambientais estaduais ainda estão despreparados para o CAR. Nesses órgãos falta não só recursos humanos, como também estratégias claras de como será feita a análise e validação dos cadastros.

IHU On-Line – O CAR tem recebido algumas críticas, entre elas, o fato que você menciona, de não ser necessário um técnico para fazer a inscrição da propriedade no Cadastro. Quais as implicações desse processo?

Flávia Camargo de Araújo – Isso implica que sem uma orientação técnica dificilmente o CAR terá a qualidade necessária como instrumento de gestão ambiental. Elaborar plantas georreferenciadas não é uma tarefa trivial, principalmente se considerarmos a necessidade de uma precisão mínima para identificar as Áreas de Preservação Permanente – APP. Além disso, identificar as APPs em função da declividade poderá ser uma tarefa ainda mais complexa.

Também não é simples compreender a legislação florestal, que possui uma série de termos técnicos e situações particularizadas conforme a data do desmatamento e o tamanho da propriedade. Não sendo tarefas fáceis e tendo em vista a baixa capacitação técnica dos produtores rurais quanto a essas questões, o mais provável é que muitos dos dados do cadastro que serão inseridos diretamente por eles conterão uma série de erros e imprecisões.

Com isso, o trabalho desses órgãos será muitas vezes maior do que seria no caso de os cadastros serem elaborados por técnicos qualificados. Da forma como está previsto, haverá muito “retrabalho”, diminuindo a eficiência do processo.

IHU On-Line – Por que avalia que o CAR poderá se tornar uma ferramenta inócua?

Flávia Camargo de Araújo – Faltam, na regulamentação, alguns pontos importantes para garantir a efetividade doCAR. O fato de ser declaratório e de dispensar a obrigatoriedade de um técnico, inclusive na fase de assinatura do termo de compromisso, demonstra a falta de prioridade em garantir a qualidade no processo de regularização ambiental. Além disso, há pouca preocupação com o processo de análise e validação do CAR. Não há sequer uma previsão de prazo para essa etapa de verificação do caráter fidedigno das informações.

Outro ponto frágil previsto nos normativos é que bastará o recibo da inscrição no CAR para poder acessar o crédito rural. Não será exigida a validação das informações inseridas no cadastro para que o produtor tenha o documento necessário para seu crédito bancário ser liberado. Tanto aquele produtor que fez seu cadastro da forma correta como aquele que inseriu informações falsas terão o mesmo direito nesse caso.

IHU On-Line – Que impactos são visíveis no campo por conta da não implementação do CAR?

Flávia Camargo de Araújo – A demora no lançamento oficial do CAR teve impactos negativos no campo. Os produtores ficaram esperando a regulamentação e essa espera desmobilizou inclusive os produtores que estavam buscando a sua regularização ambiental antes mesmo da nova legislação florestal ter sido aprovada. Vários viveiros de mudas tiveram queda significativa nas suas vendas, sem contar os que encerraram suas atividades.

Em Mato Grosso, por exemplo, o Instituto Socioambiental desenvolve há vários anos um trabalho de restauração florestal junto aos agricultores localizados no entorno do Parque Indígena do Xingu. Para isso, foi formada a Rede de Sementes do Xingu para fornecer sementes para os agricultores restaurarem suas áreas de preservação permanente e de reserva legal. Nesses dois últimos anos, a demanda de sementes da Rede pelos agricultores da região caiu drasticamente.

IHU On-Line – Quais deveriam ser as exigências do CAR dentro da legislação do Código Florestal?

Flávia Camargo de Araújo – Além de exigir o acompanhamento técnico para a inscrição no CAR e no processo de regularização ambiental, os normativos deveriam estabelecer prazos para a análise e validação do CAR. Essa última etapa é fundamental para garantir que a gestão ambiental das propriedades estará sendo definida com base em informações reais e não apenas nos dados que foram declarados. Inclusive falta, na regulamentação publicada peloMMA, a previsão explícita de que os termos de compromisso só serão assinados após a validação do CAR. Não faz sentido que o termo de compromisso para a regularização ambiental seja assinado sem antes ser verificada a veracidade dos dados cadastrados e a sua adequação técnica.

IHU On-Line – Quais as implicações ambientais caso o CAR não seja devidamente implementado?

Flávia Camargo de Araújo – Teremos cadastros sobre os quais não poderemos ter segurança acerca do caráter real das informações. Isso implica a não efetividade desse instrumento. Poderemos ter áreas que foram declaradas como preservadas sem que estejam sendo de fato conservadas. Poderemos ter erros, negligências ou omissões intencionais nas declarações que geram uma “diminuição” no passivo ambiental em desacordo com a realidade no campo. Isso poderá reduzir as obrigações do produtor em restaurar suas áreas de preservação. Produtores poderão, portanto, estar regulares no papel sem estar regulares no campo. As perdas ambientais, que já foram imensas com as anistias concedidas pela nova lei, poderão ser ainda maiores, prejudicando a qualidade da água, do solo e da biodiversidade.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Flávia Camargo de Araújo – A falta de comprometimento do Poder Público com a implantação de um CAR de qualidade é apenas mais um passo desastroso na política ambiental brasileira. São realmente lamentáveis as perdas que tivemos nos últimos anos em decorrência das mudanças na legislação florestal.

A aprovação da nova legislação florestal foi uma derrota imensa para toda a sociedade, inclusive para os produtores rurais, aos quais dependem das condições ambientais para realizar as suas atividades econômicas. As anistias concedidas representam grandes áreas que deixarão de ser recuperadas e não mais irão prestar os tão necessários serviços ambientais, como proteção dos cursos de água, infiltração e armazenamento de água no solo, controle de erosão e polinização.

Já estamos vivendo as consequências das negligências com o Código Florestal antigo. A falta de água que vemos em São Paulo, por exemplo, tem correlação com o enorme desmatamento na região. Se não houver mudanças de rumo, situações como essa podem se tornar cada vez mais comuns.

Infelizmente, parece que as consequências negativas da nova legislação florestal não se resumem apenas à diminuição dos padrões de proteção ambiental para aqueles que desmataram, há também um enfraquecimento de instrumentos como o CAR. Se continuar da forma como está regulamentado, o CAR poderá se tornar uma ferramenta burocrática de regularização dos produtores apenas no “papel”, e não na realidade do campo.

Uma interpretação do Código Florestal pode anistiar quem desmatou o Cerrado


Se essa interpretação valer, a maioria dos fazendeiros estará livre de qualquer obrigação de recuperar as áreas de reserva legal do Cerrado, bioma fundamental para garantir a água e o clima do país

Canavial no interior de São Paulo. Sobrou pouco do Cerrado original (Foto: José Reynaldo da Fonseca/ Wikimedia Commons)

Uma interpretação jurídica do Código Florestal pode anistiar quase toda a devastação que aconteceu no Cerrado brasileiro. Se essa interpretação valer, a maioria dos fazendeiros estará liberada de qualquer obrigação de recuperar as áreas de reserva legal do Cerrado.O bioma, um dos mais maltratados do país, fundamental para manutenção do clima e reabastecimento dos rios e aquíferos, pode ter sua regeneração ameaçada.

>> O Cerrado perdeu biodiversidade além do limite seguro

A polêmica envolve a segunda fase do maior esforço nacional para regularizar a situação ambiental das propriedades rurais. Na primeira fase da empreitada, os fazendeiros preenchem o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Ali declaram as medidas e a localização de seu terreno. Indicam detalhes como rios e florestas. E apontam como estão as áreas de preservação permanente (como margens de rios ou topos de morro) e a reserva legal (parte da área que precisa guardar vegetação nativa). Depois que o CAR é aprovado pela autoridade responsável (geralmente o órgão estadual de meio ambiente), o fazendeiro parte para uma regularização do terreno. Se ele tiver desmatado mais do que podia, precisa recuperar ou comprar créditos de quem tem vegetação sobrando. É o Programa de Regularização Ambiental (PRA). O PRA segue regras que são estabelecidas para cada estado em leis próprias. Os estados têm liberdade para fazer essas leis, desde que não entre em conflito com a lei nacional, o Código Florestal, aprovado em 2012.

>> O impacto do desmatamento desordenado do Cerrado

A disputa gira em torno dessa regulamentação estadual do PRA, que determina entre outras coisas o que deve ser restaurado nas áreas de Cerrado. A obrigação de recuperar depende do que dizia a lei quando foi feito o desmatamento. Quem tirou a vegetação original antes da obrigação de conservar não está em desacordo com a lei. Segundo o Código Florestal de 2012, “os proprietários ou possuidores de imóveis rurais que realizaram supressão de vegetação nativa respeitando os percentuais de Reserva Legal previstos pela legislação em vigor à época em que ocorreu a supressão são dispensados de promover a recomposição, compensação ou regeneração para os percentuais exigidos nesta Lei”.

>> Como o Cerrado afeta o ciclo das chuvas

O primeiro Código Florestal do Brasil foi aprovado em 1934 em pleno ciclo do café no Sudeste do país. A preocupação na época era evitar a falta de lenha. O Código obrigava os proprietários a manter 25% da área dos imóveis com a cobertura de mata original. O problema é entender o significado semântico da palavra “mata” nos anos 1930.

O Código de 1934 foi complementado pelo de 1965 promulgado pelo presidente Castello Branco. Essa nova lei não fala de reservas legais, mas cria a figura das áreas de preservação permanente, que devem ser resguardadas. Diz a lei: “As florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País”. Ou seja, a lei inclui não só florestas, mas outras formas de vegetação. A lei diz que será considerada área de preservação permanente a vegetação ao longo de rios, ao redor de lagoas, no topo de morros, nas encostas, nas restingas e em altitude acima de 1.800 metros. Se o termo “demais formas de vegetação” incluir o Cerrado, a lei de 1965 passa a impedir o desmatamento desse bioma nas áreas de preservação permanente.

>> O combate ao desmatamento precisa se concentrar no Cerrado

A primeira menção explícita ao Cerrado em algum Código Florestal nacional é de 1989. Ela apareceu na Lei 7.803 que foi inserida no Código Florestal antigo de 1965. A lei de 1989, assinada pelo presidente José Sarney, declara a necessidade de preservar a reserva legal de imóveis rurais em area de Cerrado. Diz: “Aplica-se às áreas de cerrado a reserva legal de 20% para todos os efeitos de lei”. Diante disso, alguns argumentam que quem desmatou o Cerrado até 1989 estava de acordo com a lei vigente e não precisa recuperar nada agora.

Segundo o advogado Paulo Daetwyler Junqueira, do departamento jurídico da Sociedade Rural Brasileira, o termo “mata” do Código de 1934 excluiria o Cerrado. “Logo, no nosso entendimento, a área de Cerrado poderia sim ser utilizada.” Para ele, isso isenta quem desmatou antes de 1989 de qualquer obrigação. “Para nós, quem usou área de Cerrado antes de 1989 não precisa recompô-la”, diz.

>> As florestas invisíveis do Brasil

O principal terreno da disputa legal é o estado de São Paulo. Não que São Paulo seja pioneiro na regulamentação do PRA. Outros estados como Mato Grosso, Pará, Rondônia, Goiás e Bahia já fizeram suas leis. Mas a decisão de São Paulo têm consequências nacionais. Primeiro, ela é usada para balizar a legislação em outros estados. Além disso, São Paulo importa porque pode alimentar o mercado de créditos ambientais. “São Paulo tem o agronegócio mais rico do país”, diz Roberto Resende, da Iniciativa Verde. “Se os produtores paulistas tiverem demanda de compensação em áreas de Cerrado, eles podem alimentar o mercado de créditos no Cerrado de outros estados como Bahia e Goiás. Podem ajudar a incentivar e financiar as áreas de Cerrado no resto do Brasil.”

No caso de São Paulo, há leis estaduais complementam o Código Florestal nacional e podem aumentar a proteção do Cerrado antes de 1989. A referência mais antiga é a lei estadual de 1927. É anterior ao Código de 1934. Ela diz que: “Os proprietarios dos terrenos de área superior a cem hectares em que existam mattas, são obrigados a reservar dez por cento da área total em florestas, salvo quando se tratar de mattas homogeneas, que se refaçam, ou se regenerem por brotação espontaneas, as quaes ficam insentas desta condição”. A lei fala que a regra dos 10% são aplicáveis a “mattas”, ou “matas” na grafia atual. O proprietário é obrigado a reservar área em “floresta”. Não está claro se essa descrição de “floresta” e “mata” inclui algum tipo de Cerrado.

A primeira menção direta ao Cerrado na lei estadual de São Paulo é no Decreto 49.141 de 1967. Ele cria regras para a exploração dependendo do tipo de Cerrado. Esse decreto exige a preservação de 20% do que é considerado cerradão. Esse cerradão é descrito como  “a formação vegetal constituída de três andares distintos”. O primeiro andar tem espécies rasteiras, o segundo tem arbustos e pequenas árvores. O terceiro andar é a floresta com “árvores geralmente de 5 a 6 até 18 a 20 metros de altura, de troncos menos tortuosos, com predominância de madeiras duras”. Os outros tipos de Cerrado, com predominância de vegetação rasteira ou arbustiva, não contam com a mesma proteção legal.

Vários ambientalistas se amparam nessa na lei de 1927 e no decreto de 1967 para defender que o Cerrado em São Paulo já estava protegido antes de 1989. E que quem desmatou antes disso precisa recompor. “Setores atrasados do país estão dizendo que só se aplica a proteção desde 1989”, diz o advogado e ambientalista Fábio Feldmann. “Mas São Paulo foi o primeiro estado a criar a reserva legal, de 10%, em 1827.”

O problema é que a lei de 1927 fala em “mata” e o decreto de 1965 só protege o cerradão. O resultado prático é que mesmo com a proteção legal do Cerrado florestal, o cerradão, vai ser difícil recuperar o que foi devastado. Provar o que era cerradão e não outro tipo de cerrado antes de ter sido destruído há várias décadas, dentro de terras privadas, é uma tarefa bem complicada. O mais provável é que os fazendeiros que desmataram antes de 1989 digam que cortaram áreas dominadas por gramíneas ou arbustos para escapar de qualquer obrigação agora. Por falta de informação sincera ou má-fé? Quem vai saber? A própria Sociedade Rural Brasileira admite que é difícil saber o tipo de fisionomia de cerrado que existia na fazenda. “Em muitos casos chegaremos a uma situação onde não será possível lembrar qual era a vegetação antes, se cerradão ou campo limpo”, diz Francisco Godoy Bueno, vice-presidente da Sociedade. “Na dúvida, não poderemos condenar o produtor rural. Não se pode assumir que ele cometeu um crime ambiental”, afirma. “Um dos princípios do Código Florestal é procurar manter as áreas produtivas como tais. E não transformar áreas antropizadas em áreas de preservação.”

Mesmo que a interpretação do Código Florestal e das leis estaduais só considere o Cerrado protegido a partir de 1989, há muito desmatamento feito depois disso para recuperar. Segundo dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento dos Biomas Brasileiros por Satélite o Cerrado paulista perdeu 72.108 quilômetros quadrados até 2011. Isso significa que 89% da área total do bioma no estado foi devastada. A mesma pesquisa mostra que as áreas ocupadas por lavouras temporárias e permanentes aumentaram uma vez e meia entre 1975 e 2006. Essas áreas foram abertas em cima da vegetação nativa já depois do código de 1989 em vigor.

Aí o problema é quem faz a interpretação do Cadastro Ambiental Rural para determinar se o produtor precisa recuperar algo. Há possibilidade de deixar quem desmatou escapar impune. A primeira tentativa de o estado de São Paulo regulamentar a regularização ambiental (o PRA), a Lei 15.684 de 2015 não foi bem-sucedida. A lei abria várias brechas para anistiar os desmatadores. Foi suspensa pela Justiça depois que o Ministério Público de São Paulo entrou com uma ação de inconstitucionalidade. O MP alegou que a lei estadual era mais permissiva do que o Código Florestal nacional, o que vai contra a Constitutição.

Uma coalização de ONGs lançou uma campanha, o Movimento Mais Florestas PRA São Paulo, na tentativa de garantir uma regulamentação do PRA que não perdoe todos que desmataram o Cerrado ilegalmente – ou em situação legal ambígua. A recuperação do Cerrado é importante para o estado e para o país. O Cerrado paulista é a área de recarga da maior parte do Aquífero Guarani. Do Cerrado dependem as nascentes que abastecem regiões de cidades como Bauru, Araçatuba e Ribeirão Preto. Em várias regiões do estado, há menos de 5% do Cerrado remanescente. Isso é insuficiente para garantir que a vegetação mantenha o equilíbrio climático e proteja espécies endêmicas. Sem recuperar o Cerrado, o Brasil não vai atingir a meta de combate às mudanças climáticas prometida no Acordo de Paris, diz Roberto Resende, do Movimento Mais Florestas PRA São Paulo. Ainda por cima, o Cerrado é fundamental para os próprios agricultores. Segundo pesquisas recentes, a saúde do Cerrado garante o ciclo de chuvas que alimenta a própria lavoura.

Fonte: Época

Cadastro Ambiental Rural: não dá mais para esperar


"Certamente, o maior ganho em todo o debate sobre o Código Florestal foi a criação desse importante instrumento, que permitirá que o país tenha um registro de todas as suas propriedades rurais com informações sobre o imóvel e as respectivas APP – Áreas de Preservação Permanente e Reservas Legais", Fabio Feldmann, consultor ambiental, publicado pelo jornal Brasil Econômico, 03-04-2014.

 

Eis o artigo.

 

             

 

Na semana anterior participei de um debate importante sobre a regulamentação infraconstitucional do Artigo 225 daConstituição Federal, no que tange à consideração de que alguns biomas brasileiros são considerados “Patrimônio Nacional”: Mata Atlântica, Floresta Amazônica, Serra do Mar e Zona Costeira.

 

Assembléia Nacional Constituinte deixou de contemplar o Cerrado e a Caatinga nesta categoria. Em 1993, na mal sucedida revisão constitucional, houve uma tentativa de se reparar essa omissão, estando em tramitação noCongresso Nacional algumas Propostas de Emenda Constitucional (PECs) que objetivam suprir essa lacuna.

 

Infelizmente, apenas o bioma Mata Atlântica foi objeto de uma legislação específica, editada em 2006, após quatorze anos de tramitação. Ou seja, o Congresso Nacional e o Executivo Federal têm sido absolutamente omissos no que tange a essa matéria, especialmente se levarmos em conta que a Constituição Federal está prestes a completar seu 26° aniversário.

 

Esta omissão tem sido responsável, em minha opinião, por uma relação extremamente litigiosa entre ambientalistas e ruralistas, pelo fato de que o único instrumento legal existente para proteger os biomas brasileiros é o Código Florestal. Desse modo, o país perde a oportunidade de editar legislações que permitam atender a complexidade intrínseca aos biomas, dispensando o uso e o conhecimento da ciência sobre os mesmos.

 

Apenas a título de exemplo, uma legislação que trate do Pantanal deve levar em conta o regime hídrico do bioma, a sua topografia e condições de solo, bem como os impactos prováveis do aquecimento global. Significa dizer que nos dias atuais, um legislador responsável deve escolher um modelo de legislação diferente do velho e atual CódigoFlorestal.

 

Outro exemplo importante diz respeito à regulamentação infraconstitucional da Serra do Mar, também considerada “Patrimônio Nacional”: dada à sua reconhecida instabilidade geológica, potencialmente causadora de tragédias nos períodos de chuvas, caberia ao legislador nacional criar um marco regulatório que impedisse a ocupação inadequada, como vem ocorrendo nas últimas décadas.

 

Independentemente da necessidade dessa legislação sobre os biomas inseridos na categoria “Patrimônio Nacional”, o instrumento mais importante do novo Código Florestal está pendente de regulamentação: o CAR – Cadastro Ambiental Rural.

 

Certamente, o maior ganho em todo o debate sobre o Código Florestal foi a criação desse importante instrumento, que permitirá que o país tenha um registro de todas as suas propriedades rurais com informações sobre o imóvel e as respectivas APP – Áreas de Preservação Permanente e Reservas Legais. Com isso, será possível indicar com precisão os passivos e ativos ambientais, propriedade a propriedade. Essa informação, com certeza, será um instrumento efetivo de cumprimento da legislação e possibilitará o desenho de boas políticas públicas.

 

Boas políticas públicas que protejam os vários interesses em jogo. Desde a segurança jurídica necessária aos proprietários rurais, passando pela garantia de que esses biomas continuarão prestando os serviços ambientais tão necessários à Humanidade. No Brasil, nos dias atuais, é a garantia de que continuaremos a ter água.

 

Fonte: IHU – Unisinos

Cadastramento rural é pré-requisito para licenciamento ambiental


Uma portaria conjunta da Secretaria do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Sema) e da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) torna obrigatória a comprovação da inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR) para fins de licenciamento ambiental de qualquer empreendimento ou atividade desenvolvida em imóvel rural.

A nova regra entre em vigor no próximo dia 18 de outubro, já que os órgãos ambientais estabeleceram prazo de 60 dias a partir da data da publicação da portaria no Diário Oficial do Estado, em 19 de agosto, para a apresentação do número do recibo de inscrição no CAR. Assim, o registro torna-se pré-requisito para as solicitações de licenciamento ambiental nas propriedades e posses rurais.

A diretora do Departamento de Biodiversidade (DBio) da Sema, Liana Barbizan Tissiani, explica que o objetivo é promover a integração das informações ambientais numa mesma base de dados, possibilitando o planejamento, monitoramento, e principalmente, a regularização ambiental.

O CAR é um registro público eletrônico de âmbito nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais e que atesta a regularidade ambiental de acordo com a Lei Federal 12.651/2012.

No Rio Grande do Sul, até 31 de julho deste ano, 454.823 imóveis haviam se cadastrado, o que corresponde a 94,75% do total estimado de 480 mil imóveis rurais. A área cadastrada é de 16.863.377 hectares de um total de 20.326.355 hectares, o que corresponde a 82,96% da área passível de cadastro. Em relação aos imóveis cadastrados, 94% são de até quatro módulos fiscais.

Texto: Catarina Gomes/Ascom Sema
Edição: Gonçalo Valduga/Secom 

Fonte: Fonte: Todos Pelo Rio Grande