Variedade de sementes é estratégia para enfrentar mudanças climáticas


Esta notícia está associada ao Programa: Vale do Ribeira

Com apoio do ISA e parceiros, comunidades quilombolas do Vale do Ribeira promovem feira de sementes para fortalecer sua agricultura tradicional e enfrentar as alterações do clima


As mudanças climáticas já fazem parte do dia a dia dos quilombolas do Vale do Ribeira. As comunidades negras, descendentes de escravos, que há mais de 100 anos vivem nessa região entre São Paulo e Paraná, contabilizam os impactos que as alterações no clima estão trazendo para suas vidas: o excesso de chuvas, as temperaturas muito baixas ou picos de calor intenso têm prejudicado os preparativos para iniciar o plantio nas roças, por exemplo.

"A gente começa o preparo para o plantio de milho, feijão e mandioca em junho. Mas este ano o frio foi pior, teve geada e ainda não esquentou”, diz Zeni de França da Rosa, liderança do quilombo São Pedro, em Eldorado. "Julho está no fim, o frio continua e por isso nenhum plantio começou, tá tudo atrasado", completa.

As adaptações e enfrentamento às mudanças climáticas estão no centro da programação da Feira de Troca de Sementes e Mudas, que vai se realizar em 20 de agosto, em Eldorado (SP). Evento anual desde 2008, a feira é importante momento de reunião das 19 comunidades quilombolas do Ribeira que participam do GT da Roça, grupo organizador das feiras. Permite o resgate de variedades de cultivares e troca de sementes, que são inclusive a base do Sistema Agrícola Quilombola, em processo de reconhecimento como patrimônio cultural brasileiro, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). "São as variedades de sementes e o sistema agrícola como um todo que podem garantir a segurança e a soberania alimentar das comunidades", afirma Raquel Pasinato, coordenadora do Programa Vale do Ribeira do ISA.

Quilombolas mostram variedades de mudas aos visitantes da oitava edição da feira, no ano passado

Este ano, a nona edição da feira será precedida pelo seminário“Agricultura tradicional e estratégias de adaptação às mudanças climáticas”, a se realizar no dia 19 de agosto. No programa estão conversas com Márcio Santilli, sócio-fundador do ISA, que vai falar sobre como anda a questão do clima no Brasil e fora dele, o depoimento de uma liderança quilombola e a apresentação do filme Para onde foram as andorinhas, no qual os índios do Parque Indígena do Xingu (MT) contam como o clima está interferindo em suas vidas.

Haverá também uma conversa sobre a importância da agrobiodiversidade e da diversidade de variedades como estratégia para enfrentar as mudanças climáticas e para a segurança alimentar com a participação de Patricia Bustamante da Embrapa Brasília, além de depoimentos dos quilombolas Benedito Alves (quilombo Cedro/Barra do Turvo); Francisco Salles Coutinho (quilombo Mandira/Cananéia); e
e Zeni de França da Rosa (quilombo São Pedro/Eldorado). Uma oficina de culinária tradicional quilombola também será ministrada aos interessados.

Ao final do seminário, será lançado oficialmente o DVD com os três vídeos que mostram o que é e como funciona o Sistema Agrícola Quilombola. Confira aqui a programação.

Serviço

19/8 – 8h30 às 18h – Seminário Agricultura tradicional e

estratégias de adaptação às mudanças climáticas, no Salão Paroquial,

Eldorado.

20/8 – 8h30 às 13h – Feira de Troca de Sementes e Mudas, Praça

Nossa Senhora da Guia, Eldorado

Fonte: Instituto Socioambiental

Empreendimentos e invasões ameaçam comunidade quilombola no Pará


Tubulação despeja resíduos sem tratamento no igarapé Aracanga, fonte de alimento e lazer para os moradores do Abacatal. (Kleyton Silva/Amazônia Real)

Patrícia Azevedo

Entre os 2,5 milhões de habitantes que integram a Região Metropolitana de Belém, um grupo de 121 famílias, com aproximadamente 500 pessoas, luta para preservar seu espaço e suas tradições. Trata-se da Comunidade Quilombola Abacatal-Aurá, que hoje ocupa um território de 618 hectares no município de Ananindeua. Sua história, no entanto, remonta a 1710, quando o conde Coma de Melo, então dono das terras, teve três filhas com Olímpia, uma de suas escravas. No decorrer dos séculos, os descendentes mantiveram vários elementos de sua cultura – o carimbó, os banhos de cheiro, o cultivo de plantas medicinais, a agricultura e o artesanato. Elementos que tentam escapar ao cerco do crescimento urbano e de projetos de infraestrutura, como rodovias e conjuntos habitacionais, que podem impactar diretamente a vida da comunidade.

“De 2017 para cá, Abacatal foi bastante visada. Construíram grandes empreendimentos à margem do território, ficaram muito próximos. Sofremos diferentes ameaças – rodovias, ferrovias, gasoduto, o lixão de Marituba. Condomínio ‘Minha casa, minha vida’, sem estrutura nenhuma para as pessoas viverem lá. Então, a nossa luta é diária”, afirma Vivia Cardoso, presidente da Associação de Moradores e Produtores Quilombolas de Abacatal-Aurá (AMPQUA). Na próxima semana, ela estará em Belo Horizonte para a 4ª Semana de Estudos Amazônicos (Semea), onde participará de dois debates.

O primeiro deles, na quinta-feira (31), abordará a gestação, o parto e o puerpério nas culturas tradicionais. “A nossa comunidade ainda tem pessoas que puxam a barriga, mas não fazem mais parto. Tem uns 20 anos que não tem mais. As mulheres puxam, ajeitam o bebê, mas aí vão para o hospital. As gestantes fazem o pré-natal todo e têm seus filhos lá”, conta Vivia. Na sexta-feira (1º), a quilombola comporá a mesa de encerramento do evento, com o tema “Mulheres dos povos tradicionais da Amazônia: lutas e desafios”. Confira a programação completa!

 Território

Um dos principais desafios da Comunidade Quilombola Abacatal-Aurá é a manutenção e defesa do território. Em 1999, depois de 40 anos do primeiro pleito para titulação da área, a comunidade teve suas terras regularizadas no Instituto de Terras do Pará (Iterpa). No âmbito internacional, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) garante a povos indígenas e tribais, em Estados independentes, o direito ao controle da terra e das atividades que assegurem sua sobrevivência. É considerada o instrumento mais atualizado e abrangente em respeito às condições de vida dos indígenas e povos tradicionais.

“A OIT não garante o direito sobre a nossa terra. Apesar de o Brasil ser signatário, era para os povos indígenas, tribais, quilombolas, ribeirinhos e tantos outros serem amparados por essa lei, de fato. Que não pudessem entrar e expulsar as pessoas dos territórios, fazer empreendimentos. Isso não funciona”, aponta Vivia. Segundo ela, governo e empresas cooptam pessoas das próprias comunidades tradicionais, o que torna a invasão avassaladora. “Você também vai lutar contra o seu, ali do seu lado, porque ele já foi cooptado – pelo emprego, pela mão de obra barata ou por um dinheirinho. Até mesmo por achar que ainda tem gente boazinha, que vai dar alguma coisa para ele no futuro. Ainda tem muito isso aqui”, completa.

Obras do projeto Minha Casa, Minha Vida em Ananindeua. (Foto: Kleyton Silva/Amazonia Real)
Obras do Minha Casa, Minha Vida em Ananindeua. (Kleyton Silva/Amazonia Real)

Consulta

Embora os artigos 15 e 14 da Convenção 169 enfatizem o direito de consulta e participação dos povos tradicionais no uso, gestão (inclusive controle de acesso) e conservação de seus territórios, irregularidades ainda são práticas comuns. Em 2016, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia (Sedeme) do Pará apresentou o projeto da rodovia Liberdade, com o objetivo de ligar Belém aos demais municípios metropolitanos e desafogar a rodovia BR-316. Para o governo, o projeto representa uma oportunidade para consolidação de parcerias público-privadas na região. “Se o governo achar que é melhor para a Região Metropolitana de Belém deixar Abacatal reprimida aqui, num pedacinho de terra, ele vai fazer isso”, afirma Vivia.

Já a comunidade de Abacatal considera a obra uma ameaça à sua soberania. Em resposta, iniciou a elaboração de um protocolo para estabelecer exatamente como os moradores devem ser consultados em caso de realização de projetos. “Temos o nosso protocolo de consulta desde 2017. Nós construímos esse instrumento. Hoje, trabalhamos para levá-lo para outras comunidades. É importante que as pessoas saibam: existe uma lei que nos ampara. Nós podemos denunciar”, enfatizou.

Por outro lado, a quilombola lembra as ameaças sofridas por lideranças e autoridades públicas que trabalham em defesa dos povos tradicionais. “Temos processos na Defensoria Pública, mas eles continuam lá, a passos lentos. Nosso defensor foi afastado, por quê? Porque ele estava sendo um empecilho, estava ajudando a nos defender junto à OIT. São pouquíssimos que estão dispostos a se indispor com o governo por causa de uma comunidade quilombola ou de uma tribo indígena.”

Saídas

Para Vivia, a busca de parcerias é uma das soluções para fortalecer a defesa dos povos tradicionais. Uma delas, já em andamento, foi firmada com o Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (Olma). “Juntos, estamos traçando metas não só para Abacatal, mas para outros territórios do estado do Pará”, informa a quilombola. Ela acredita também que denúncias internacionais podem dar mais visibilidade à causa, mas nesse caso, a comunidade precisaria da ajuda de outras instituições.

Enquanto isso, os moradores continuam lutando com a cultura e a tradição. “Seguimos vivendo da agricultura familiar, dos remédios caseiros, da sua prática de trabalhar a terra com responsabilidade e respeito. Cantamos nossas vitórias e dificuldades, em forma de carimbó. Recorremos às benzedeiras. E seguimos brigando contra poderosos. Porque nenhum deles está com a gente, querem só os benefícios”, reforça a quilombola.