“Lixo é riqueza, não pode ser desperdiçado”


Entrevista com Ricardo Abramovay

                                            

 

Responsabilidade compartilhada, poluidor-pagador, logística reversa. Daqui em diante vamos conviver com esses e outros termos até agora estranhos. Eles passam a fazer parte do cotidiano dos brasileiros e revelam uma nova era na destinação do lixo, com o início da vigência, a partir de meados de 2014, da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Ela prevê o fim dos malcheirosos lixões a céu aberto e a certeza de que a sociedade terá papel decisivo na destinação adequada do lixo. Inclusive o cidadão comum.

Quem revela o significado dessas expressões e como será a vida quando vigorar a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) é Ricardo Abramovay, professor de economia da Universidade de São Paulo especializado em desenvolvimento sustentável.

A reportagem é de Alexandre Severo e publicada por Planeta Sustentável, 19-12-2013.

Sobre o tema, ele e colegas lançaram o estudo Lixo Zero – Gestão de Resíduos Sólidos para uma Sociedade Mais Próspera, disponível em formato digital pelo Planeta Sustentável (que lançou Muito Além da Economia Verde, de sua autoria, em 2012), do qual é conselheiro. O economista alerta que se deve frear a exploração dos recursos naturais e estimular a reciclagem: “Lixo é riqueza, não pode ser desperdiçado”.

Eis a entrevista.

Qual é o ponto crucial da Política Nacional de Resíduos Sólidos?

É a chamada responsabilidade compartilhada. Ela sinaliza que estamos todos incumbidos de dar destinação correta ao lixo produzido: as prefeituras, os governos estaduais e federal, as empresas e o próprio consumidor. É importante delimitar em que consiste o compromisso de cada um; sobretudo, saber quem paga a conta. Para o consumidor, a responsabilidade compartilhada exige que ele separe seu lixo, preparando-o para a reciclagem, sob pena de multa. A lei prevê também o conceito da responsabilidade estendida. Com ela, o produtor ou o importador (denominados poluidores-pagadores) terão de responder pelo envio apropriado dos rejeitos do que venderem ao consumidor final, incluindo a estruturação da logística reversa – o recolhimento e a devida reciclagem desses produtos pós-consumo –, para que tenham destinação mais adequada que não os aterros.

Mesmo os aterros controlados não são apropriados?

Não. Temos três tipos de aterro: os lixões a céu aberto, os aterros controlados e os sanitários. Todos são inadequados porque o resíduo sólido é uma riqueza que pode e deve, em sua esmagadora maioria, ser reaproveitada pela sociedade.

Será preciso fazer campanhas para conscientizar o consumidor?

Sim. A experiência internacional mostra que o consumidor só faz a parte dele quando recebe boa educação ambiental. Na Europa, as empresas gastam muito dinheiro com publicidade pedagógica, e aqui será preciso fazer o mesmo. Também é necessário ter um sistema de coleta coerente com essa nova obrigação do consumidor. Em muitas cidades brasileiras é frequente as pessoas mais conscientes fazerem a triagem de seu lixo domiciliar e depois constatarem que o caminhão da coleta mistura todos os rejeitos de novo. Isso desmoraliza o processo. É mais um fator institucional, que precisa ser organizado de forma coerente nos municípios por três atores importantes: as prefeituras, os catadores e as empresas.

O senhor concorda com o pagamento de uma taxa sobre os resíduos produzidos pelo consumidor?

É polêmico, mas creio que essa deva ser outra responsabilidade das pessoas. Na cidade de São Paulo, a taxa chegou a ser cobrada, anos atrás, e depois foi suspensa. Houve o erro de demonizar essa cobrança, e sua suspensão foi tratada pelos paulistanos como uma vitória da cidadania. Mas a taxa do lixo continua sendo paga, agora embutida no imposto predial e territorial urbano (IPTU).
Sem a cobrança explícita, as prefeituras não podem premiar quem faz a separação correta de seu lixo nem oferecer incentivos às pessoas que produzem menos resíduos e promovem a reciclagem.

Quem irá financiar o sistema de logística reversa?

Serão os fabricantes e importadores; por isso, agora são chamados de poluidores-pagadores. O sistema já é praticado, de forma eficiente, no Brasil, com pneus, embalagens de óleos combustíveis e de agrotóxicos, além de baterias automotivas. Esses cinco setores privados organizam e pagam os custos da coleta e da reciclagem dos produtos, antes mesmo da nova lei. Em meus tempos de criança, o que mais se encontrava nos rios Pinheiros e Tietê, em São Paulo, eram pneus velhos. Hoje, eles são reciclados. Há uma agência chamada Reciclanip responsável por essa tarefa. No caso das embalagens de agrotóxicos, o setor gasta R$ 80 milhões por ano para organizar sua logística reversa.

A dificuldade maior está em produtos com venda descentralizada e descarte domiciliar.

Quais são esses produtos?

São embalagens em geral, desde latinha de bebida até garrafa PET e caixinha longa-vida. Nesse ponto, a lei quer aguardar o que os respectivos setores têm a dizer. Aí, há uma queda de braço entre fabricantes e governo: a proposta das empresas é apenas auxiliar com recursos financeiros os catadores de rua, oferecendo a eles infraestrutura para melhorar o trabalho e a produtividade.

E só. No entender desses fabricantes, a tarefa de coleta e logística reversa ficaria a cargo das prefeituras, com os catadores.

A alegação é de que não é possível ir aos domicílios recolher as embalagens descartadas. Acontece que esse tipo de argumento está enfraquecido. Ao contrário do que propõem no Brasil, essas mesmas empresas se comprometem com o pagamento da logística reversa nos países desenvolvidos.

Essa responsabilidade empresarial deve ser cada vez maior?

Sim. A responsabilidade estendida não pode mais ser vista como excesso ambientalista ou exagero. É uma tendência de comportamento das grandes marcas globais. As empresas cada vez mais começam a pensar em sua cadeia de valor como um todo, e a reciclagem faz parte dessa crescente preocupação.

E o caso de pilhas, lâmpadas e eletroeletrônicos, que contêm substâncias tóxicas?

A logística reversa de produtos de difícil manuseio e com grande potencial tóxico também será responsabilidade financeira do fabricante ou do importador. Mas ninguém sabe ainda como se organizará a reciclagem. Isso porque a lei brasileira foi sábia em esperar os próprios fabricantes fazerem suas propostas como ponto de partida. O governo está recebendo essas sugestões.

Qual é a tarefa de prefeituras, estados e União com a PNRS?

As prefeituras continuarão respondendo pelo recolhimento do lixo domiciliar e, em parte, pela coleta seletiva porque são elas as primeiras responsáveis pelos resíduos gerados em seus municípios. Portanto, se esses resíduos serão recolhidos por organizações de catadores – além do trabalho das empresas de coleta contratadas –, deverá haver um acordo entre as partes constantes nos chamados planos municipais de gestão de resíduos sólidos. O problema é que, pela nova lei, as prefeituras já deveriam ter elaborado seus planos, e, hoje, menos de 10% delas têm eles prontos. Se não o fizerem, deixarão de receber os recursos para organizar seus sistemas de coleta. Isso revela como o poder público está atrasado, porque a base ainda não fez sua lição de casa.

Além disso, por questões legais, municípios com menos de 15 mil habitantes não podem ter aterros sanitários. Portanto, será preciso montar consórcios municipais e criar aterros conjuntos, o que, é certo, trará dois problemas. Primeiro, o orçamento do lixo no país tem a tradição de ser grande financiador de campanhas eleitorais.

Assim, é muito difícil partilhar esse orçamento com outras prefeituras, até porque isso só pode ser feito sob absoluta transparência, o que não é o que vigora no Brasil. Segundo, há aquela velha questão do “no meu quintal, não”. Ninguém vai querer um aterro em sua cidade. Resumindo: os consórcios necessários para acelerar essa transição dos lixões para os aterros sanitários ainda estão muito atrasados e será uma grande dificuldade implementá-los. Hoje, no Brasil, pouco mais de 40% de todo o lixo tem destinação inadequada. A grande maioria está em cidadezinhas das regiões Norte e Nordeste do país.

Os estados também terão papel fundamental, mas, assim como as prefeituras, os estados do Norte e do Nordeste ainda não têm planos concluídos. Por fim, o governo federal está implementando a lei, tem recursos destinados para tal, mas o dinheiro está bloqueado, pois a maioria das prefeituras e muitos estados não fizeram a lição de casa. Esse cenário fortalece a tese de que é preciso haver maior responsabilidade do setor privado. Não se pode esperar que o poder público conclua suas pendências com rapidez e facilidade, porque isso não vai acontecer.

Como resolver a questão dos catadores? Melhor tê-los regularizados ou dar a eles atribuições mais dignas?
O melhor é tê-los regularizados. A cidade de San Francisco, nos Estados Unidos, tem 800 mil habitantes e dois mil catadores de resíduos sólidos regularizados e equipados. É um trabalho digno. O serviço ambiental que essas pessoas prestam à sociedade é inestimável. No Brasil, quem faz esse trabalho é vítima das piores formas de exclusão social; por isso, associa-se essa tarefa à degradação, quando não deveria ser assim. Em uma sociedade saudável, em que não há trabalho indigno, é preciso ter uma forma de coleta destinada à reciclagem como a dos catadores.

As associações de catadores estão procurando organizar a categoria, mas a grande maioria deles está na informalidade.

Incinerar lixo para gerar energia pode ser um bom modelo?

Estudo recente compara biodigestores e incineradores convencionais. Biodigestores são mais adequados na produção de energia porque funcionam só com resíduos orgânicos, deixando os inorgânicos para reciclagem. É preciso comparar o valor potencial que provém da reciclagem com o valor do que é incinerado para produzir gás e gerar energia. Mesmo que haja vantagem ambiental e econômica em incinerar, não considero como a melhor solução. Queimar resíduos pode ser um estímulo ao desperdício para uma sociedade que ainda cultua o vício do “jogar fora”. Nós, brasileiros, e também os americanos somos sociedades assim. A vantagem de optar pela reciclagem é que esse fator incidirá também na concepção dos produtos. Até agora, não vi nenhum caso no Brasil de empresa que, com base na PNRS, tenha modificado o desenho de seus produtos em função da necessidade de facilitar a separação dos diferentes materiais para a logística reversa.

No Brasil, a quantidade de resíduos aumenta de forma vertiginosa à proporção do crescimento econômico. Como estancar isso?

Com o aumento na renda, a quantidade de lixo também cresceu. Não há orientação na publicidade ou nas políticas de crédito ao consumidor no que diz respeito ao destino do lixo. Dados recentes apontam que cada ser humano consome 10 toneladas por ano de recursos naturais. É a nossa chamada pegada material, e ela só faz aumentar: no início dos anos 2000, foram extraídos 60 bilhões de toneladas de matéria orgânica, minérios e combustíveis fósseis. Em 2008, esse número saltou para 70 bilhões de toneladas. Esses recursos não são infinitos. Se não tivermos inteligência para usar o que foi retirado do planeta, chegará o momento em que não teremos mais de onde tirar.

 

Fonte: IHU – Unisinos

Gratuidade no transporte público: uma proposta para assegurar a mobilidade urbana.


Entrevista especial com Ernesto Galindo

“As gratuidades, ou parte delas, assim como acontece em muitos países da Europa, têm de ser bancadas pelo Estado”, defende o pesquisador.

Foto: http://bit.ly/1jflrJo

Garantir o transporte gratuito para 7,5 milhões de pessoas que recebem uma renda per capita de até 70 reais é uma das alternativas à infinidade de Projetos de Lei que tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado a fim de melhorar a mobilidade urbana no Brasil. Segundo o pesquisador do Ipea, Ernesto Galindo, autor da Nota Técnica Transporte Integrado Social – uma proposta para o pacto da mobilidade urbana, que propõe a isenção das tarifas de ônibus a uma parcela da população, este projeto é viável “através da desoneração do sistema, ou seja, tirar tributos federais, estaduais e municipais do transporte público, garantindo que ele se torne mais barato”.

Em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone, Galindo esclarece que é possível subsidiar o transporte público através da “gratuidade” do serviço para estudantes e trabalhadores informais, por exemplo, a partir da instituição de leis federais, e através da “desoneração” dos tributos referentes ao transporte público. “A União, os Estados e Municípios devem desonerar o transporte público, mas essas desonerações só podem ocorrer mediante assinaturas de convênios e de um acerto em que o operador do sistema de transporte público se obriga a reduzir as tarifas.

(…) Os estados e municípios já reduziram alguns tributos por pressão popular. Então, a parte das desonerações cabe a todo mundo, mas a parte da gratuidade deve ser garantida pelo governo federal através de leis”, salienta.

Ernesto Galindo é técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.

Confira a entrevista.

Foto: http://bit.ly/19b0LOA

IHU On-Line – Como e em que medida a isenção da tarifa de 7,5 milhões de pessoas que não têm acesso ao transporte pode ser uma alternativa à mobilidade urbana?

Ernesto Galindo – Em primeiro lugar gostaria de esclarecer que essa proposta surgiu num contexto muito específico: além das manifestações que aconteceram a partir de junho, as quais tiveram uma pauta muito forte na questão da mobilidade urbana, o Ipea foi incentivado a escrever uma nota por conta do Pacto da Mobilidade Urbana anunciado pela presidente Dilma e por conta de uma série de Projetos de Lei que tramitam na Câmara dos Deputados ou no Senado, os quais tratam do assunto do transporte público, e que surgiram ou oportuna ou oportunisticamente.

Analisamos que muitas propostas não tinham um cálculo do impacto orçamentário. Então, inicialmente imaginamos uma série de formas de poder subsidiar o transporte público, depois analisamos as implicações de alguns dos impactos dos projetos de lei que estão tramitando no Congresso, e definimos a seguinte proposta: reunimos algumas gratuidades e as vinculamos ao Projeto de Lei Regime Especial de Incentivos para o Transporte Urbano de Passageiro – Reitupe, que está tramitando há mais de dez anos no Congresso, o qual define que a União, os Estados e os Municípios devem desonerar o transporte público, mas essas desonerações só podem ocorrer mediante assinaturas de convênios e de um acerto em que o operador do sistema de transporte público se obriga a reduzir as tarifas. Além disso, existe uma exigência de controle social, de melhorias no sistema de integração, bilhetagem única, etc.

Nesse contexto priorizamos quem tem uma renda muito baixa, ou seja, compatível com o valor que se trabalha no Programa Bolsa Família, quer dizer, 70 reais per capita mensal. A partir desse recorte, baixamos de um universo de mais de 20 milhões de pessoas para um universo de 7,5 milhões. Baixamos também o impacto orçamentário de mais de R$ 20 bilhões para um impacto de oito bilhões, mas consideramos que será possível chegar a menos de cinco bilhões, analisando apenas as 44 maiores cidades do país. Nós tínhamos informações sobre o valor da tarifa nessas cidades e foi possível, a partir dos dados, calcular o impacto. Além disso, de fato essas são as cidades que mais concentram transporte público.

IHU On-Line – Como subsidiar o custo dessas 7,5 milhões de pessoas a fim de garantir o Transporte Integrado Social? O senhor sugere que o governo federal juntamente com os estados e municípios arquem com os subsídios. Como?

Ernesto Galindo – Basicamente isso é possível através da desoneração do sistema, ou seja, tirar tributos federais, estaduais e municipais do transporte público, garantindo que ele se torne mais barato. Esse é um compromisso dos três entes, sendo que, dos quatro tributos previstos, a União já desonerou três: a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico – Cide, que incide sobre os combustíveis; PIS e COFINS, que são cobrados da empresa que presta serviço de transporte público; e uma alteração numa cobrança de seguridade social que recai sobre esse tipo de empresa, que alterou a forma de incidência desse tributo, ou seja, passou a ser cobrada em cima de 2% do faturamento, e isso fez com que reduzisse a carga tributária sobre essas empresas. O único tributo que a União ainda não reduziu foi o PIS e COFINS para importação de alguns produtos como chassi de pneus e combustíveis. Nós consideramos que esse é o caso mais complicado para conseguir reverter o valor da tarifa, porque está envolvido com cadeias monopolizadas ou oligopolizadas.

Os estados e municípios já reduziram alguns tributos por pressão popular. Então, a parte das desonerações cabe a todo mundo, mas a parte da gratuidade deve ser garantida pelo governo federal através de leis. Os municípios e os estados devem arcar com as gratuidades que eles determinam, ou seja, há casos em que estudantes e doadores de sangue têm gratuidade no transporte, e assim por diante.

IHU On-Line – É possível garantir a gratuidade sem aumentar o imposto de outros serviços?

Ernesto Galindo – Talvez o termo gratuidade seja incorreto, porque sempre que falamos em gratuidade, é claro que alguém está deixando de pagar, mas, para alguém deixar de pagar, outro está pagando. O que acontece no Brasil, e não é um padrão no mundo todo, é que o custo das passagens gratuitas é arcado pelos demais passageiros. Ou seja, outros passageiros pagam para que o idoso possa andar de graça no transporte público brasileiro, por exemplo. É claro que isso gera uma injustiça social, porque muitas vezes pessoas com rendas mais baixas do que um determinado idoso acabam arcando com o custo da passagem desse idoso. Então, consideramos que as gratuidades, ou parte delas, assim como acontece em muitos países da Europa, têm de ser bancadas pelo Estado.

Aí você pergunta: mas então você está tirando algo de outras pessoas? Sim. Esse é o padrão que ocorre com qualquer serviço, seja saúde, educação, e uma série de outros serviços. O que temos de evitar é que quem tem menos condição arque com esse custo. A lógica é que isso recaia sobre as pessoas que têm mais condições.

IHU On-Line – Como o senhor vê a proposta do Pacto da Mobilidade Urbana da presidente Dilma? Esse pacto já apresentou alguma ação concreta? Em que medida o Transporte Integrado Social é uma alternativa ao Pacto da Mobilidade Urbana?

Ernesto Galindo – Primeiramente quero esclarecer que li algumas matérias na imprensa e houve uma falha de interpretação no nosso texto quando os meios de comunicação informam que para o Ipea o Pacto da Mobilidade Urbana não fez nada e, por isso, estava colocando uma proposta através do Transporte Integrado Social. Esta informação está equivocada, até porque o Ipea é um órgão do governo federal e, apesar de termos a liberdade de apontar críticas, o objetivo é que elas sejam construtivas.

Então, aconteceu que acompanhamos a discussão do Pacto da Mobilidade Urbana com a Casa Civil, com o Conselho das Cidades, com o Conselho de Assuntos Federativos, com o Conselhão que foi presidido pelo presidente do Ipea, e levamos essa proposta para todos esses espaços, inclusive discutimos com movimentos sociais. A presidente Dilma recebeu os movimentos sociais e essas propostas. O próprio Conselho das Cidades emitiu uma resolução indicando de que forma esse pacto deveria ser feito, como poderiam ser utilizados os R$ 50 bilhões anunciados pela presidente para tratar da questão da mobilidade.

O que nós comentamos é que, de fato, até o momento há de concreto os 50 bilhões anunciados pela presidente, mas, em contrapartida, os movimentos sociais e outras instâncias dentro do governo também têm suas propostas referentes à mobilidade urbana e já as colocaram na mesa, anunciando uma série de propostas que consideramos válidas.

A diferença dessas propostas para as que estamos propondo agora é simplesmente porque analisamos que há um contexto em que vários Projetos de Lei poderão ser aprovados e terão um impacto muito grande. Sugerimos, portanto, que o poder Executivo se antecipe a isso e tenha uma contraproposta, porque se chegarem à presidência propostas que têm custos anuais de mais de 20 bilhões para o governo federal, o governo ficará em uma saia justa. Então, é importante que o Estado entenda esses impactos e tenha uma contraproposta para isso, tenha uma forma de priorizar esse público que está sendo colocado nos Projetos de Lei.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Ernesto Galindo – Os pontos fundamentais são esses: entender o contexto no qual essa questão está sendo proposta, que se trata de uma contraproposta aos projetos que estão tramitando na Câmara e no Senado, e entender que apesar de o pacto da mobilidade urbana não ter oficialmente nenhum resultado que vá além dos 50 bilhões — pelo menos no ponto de vista do governo — existe uma movimentação muito forte, dentro e fora do governo, de diversas propostas para esse pacto.

 

Fonte: IHU – Unisinos

Ecossistema da Amazônia tem mais valor que hidrelétricas e mineração


Águas do Rio Xingu liberadas da comporta da casa de força auxiliar no Sítio Pimental da usina hidrelétrica de Belo Monte. (DANIEL TEIXEIRA / ESTADÃO CONTEÚDO)

Patrícia Azevedo

Neste mês, a usina hidrelétrica de Belo Monte alcançou um total de 10.621,97 megawatts (MW) de potência instalada com o início da operação comercial de uma nova unidade geradora (UG). Quando totalmente concluída, contará com 24 UGs e capacidade instalada de 11.233,1 (MW). Será a maior hidrelétrica 100% brasileira e a terceira maior do mundo, perdendo apenas para a chinesa Três Gargantas e para a brasileiro-paraguaia Itaipu. O empreendimento de R$ 42 bilhões, no entanto, descumpre uma de suas principais promessas – o desenvolvimento sustentável da Amazônia. Entre as queixas da população local estão o aumento do custo de vida e da energia elétrica, piora dos sistemas de habitação, água e saneamento, e a diminuição da produção de alimentos e da pesca.

“A reflexão que se deve fazer é por que necessitamos de usinas hidrelétricas na região? Considerando as fontes alternativas, os grandes potenciais do país estão praticamente todos na Amazônia. No entanto, apenas a eólica aparece na nossa matriz energética com alguma contribuição, mesmo assim com limitações de ser considerada como fonte complementar”, aponta o professor José Cláudio Junqueira, da Dom Helder Escola de Direito. Nesta terça-feira (29), ele coordenará a apresentação de trabalhos científicos relacionados ao tema Biotecnologia, populações tradicionais, mineração, hidrelétricas e terras indígenas na 4ª Semana de Estudos Amazônicos (Semea).

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Engenheiro civil por formação, José Cláudio possui especialização e mestrado em engenharia sanitária, e doutorado em saneamento, meio ambiente e recursos hídricos. Foi pesquisador pleno e presidente da Fundação Estadual do Meio Ambiente de Minas Gerais (Feam-MG) por três mandatos. Tem ampla experiência em sistemas de gestão ambiental, avaliação de impacto, licenciamento e normalização. “O projeto de Belo Monte era um projeto antigo, que foi modificado ao longo do tempo para não inundar a volta do Xingu – curva de 180º do rio Xingu – área muito importante para as comunidades indígenas da região. Apesar desse ganho, o licenciamento ambiental da usina foi bastante tumultuado, tendo a implantação sido interrompida várias vezes pelo judiciário, que só postergou a obra”, afirma.

De acordo com o professor, a visão antagônica das partes interessadas, sem maior participação mediada, as lacunas nos estudos ambientais e a pressão política para agilização do processo de licenciamento só geraram o acirramento dos ânimos, inclusive com conflitos entre operários e comunidades indígenas. “É claro que a implantação de uma hidrelétrica impacta o bioma da região, seja ele floresta amazônica, cerrado ou qualquer outro. Inicialmente porque, para a formação do reservatório, há que se desmatar a área. No caso de Belo Monte, esse impacto foi minimizado porque a técnica utilizada foi a de usina a fio d’água, que exige menores áreas de inundação”, explica.

Professor José Cláudio Junqueira, da Dom Helder

Professor José Cláudio Junqueira, da Dom HelderDessa forma, na construção da usina, optou-se por dois reservatórios interligados por um canal de derivação, com 20 km de extensão. O reservatório principal, formado no rio Xingu, conta com 359 km². Já o reservatório intermediário, com 119 km², foi estruturado por 28 diques e canais de transposição. “Todavia, a casa de força foi localizada bem distante, mais de 10 km, o que gerou outro impacto: a vazão reduzida na volta do Xingu, restringindo atividades como pesca e navegação nesse trecho”, informa José Cláudio. Em entrevista ao DomTotal, o professor prossegue o debate e aborda os outros temas que estarão em pauta na tarde desta terça-feira (29), como biotecnologia e mineração.

O senhor comentou acima que o licenciamento ambiental da usina foi bastante tumultuado. No fim das contas, ele ficou de acordo com a legislação?

Se a usina de Belo Monte está de acordo com a legislação? Depende de como a legislação está sendo interpretada. Formalmente sim, porque as liminares foram cassadas, a obra se implantou e a Licença de Operação (LO) está válida. A reflexão que se deve fazer é por que necessitamos de usinas hidrelétricas na região? Enquanto isso, a demanda de consumo só aumenta. Nosso estilo de vida é “eletro intensivo”, a começar pelas nossas edificações “modernas” que só funcionam com luzes acesas e ar condicionado, sem contar a variedade de equipamentos eletroeletrônicos do nosso cotidiano. Será que alguém já fez a conta do gasto energético para carregar diuturnamente os mais de 200 milhões de celulares no país?

Além das hidrelétricas, a mineração é outra ameaça ao ecossistema amazônico. Como minimizar os impactos ambientais e os prejuízos para a população local?

A implantação de obras para hidrelétricas e mineração possui impactos ambientais significativos, potencializados pela abrangência das áreas necessárias para a implantação e operação desses empreendimentos, que normalmente são extensas, denominadas áreas diretas de impacto e, ainda, pelas áreas impactadas indiretamente. Isso se traduz em elevados impactos nas populações existentes nessas áreas. No caso de povos indígenas e tradicionais, a complexidade aumenta, pois, são comunidades com cultura e estilo de vida diferenciados.

Para tanto, a Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) deveria se aprofundar no conhecimento das relações existentes e prognosticar como se dariam as novas relações, a partir da implantação e operação do empreendimento. Para os impactos nessas relações, propor as medidas mitigadoras capazes de minimizar os efeitos negativos e as medidas compensatórias nos casos em que haveria incompatibilidade de mantê-las. O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) deveria aprofundar essa questão e ser capaz de apontá-la com clareza e objetividade para subsidiar a tomada de decisão.

Seria muito importante a participação das comunidades atingidas para a tomada de decisão, o que ainda não ocorre no Brasil. As audiências públicas no país são realizadas quando a decisão já está tomada. Esses foros têm sido importantes apenas para acomodação de insatisfações pontuais. Nesse sentido, as relações têm sido conflituosas com alto grau de judicialização.

Como está atualmente a exploração do subsolo na região?

O grande projeto de mineração na Amazônia é Carajás, da Vale, que já está consolidado, com tecnologia de beneficiamento a seco, que dispensa a construção de barragens de rejeitos, com grande área de preservação, protegida das invasões. A grande questão é o potencial mineral existente na Amazônia que desperta grande cobiça, inclusive internacionalmente.

Constitucionalmente, o subsolo é da União, sendo os proprietários da terra denominados superficiários. Se isso vale para todos brasileiros, há que valer para todas comunidades em solo pátrio. Todavia, a exploração dessas riquezas do subsolo deveria ser confrontada com os valores dos serviços ecossistêmicos prestados pela floresta. Se esses serviços beneficiam brasileiros e estrangeiros, todos deveriam pagar pelos mesmos.

De toda forma, se a decisão for explorar essas riquezas minerais, que seja pelo menos subsidiada por uma Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) com participação da população na tomada de decisão. E não apenas das populações tradicionais, mas de todo brasileiro. O subsolo da Amazônia não pertence apenas à população da região.

Por fim, a biotecnologia. Quais os benefícios ela pode trazer?

A biotecnologia, como os novos materiais, são a chave do futuro. A Idade da Pedra não acabou porque as pedras se esgotaram. Muitos minerais de grande utilização na atualidade não o serão no futuro. A transformação de materiais pela biotecnologia, inclusive a digestão de resíduos por bactérias gerando novas substâncias, é uma grande expectativa. Na minha opinião, a floresta amazônica encerra muito mais riqueza em si do que as jazidas sob suas raízes. Demonstrar isso em números é o nosso grande desafio.

Dom Total

Javier Bardem, um homem de causa e ação pelo meio ambiente


Javier Bardem, o homenageado do festival de Cinema Espanhol de Nantes (AFP)

Javier Bardem era um mero doador do Greenpeace quando foi convidado, por meio de seu irmão Carlos, a fazer uma viagem à Antártida no navio da organização para ajudar a aumentar a conscientização e a pressão pela criação de um santuário oceânico na região. Dali, surgiu a ideia de fazer o documentário Sanctuary (santuário, na tradução), que estreou no último Festival de Toronto.

O ator espanhol ficou tão espantado com o que descobriu sobre a velocidade da mudança climática e de como isso afeta os oceanos e a Antártida que participou de reuniões com políticos e na ONU. Durante o Festival de Zurique, onde também apresentou o documentário, Bardem falou à reportagem.

O que o levou a fazer o documentário?

Foi o interesse natural de um cidadão que é pai de uma criança de oito anos de idade e outra de seis. Que está sentindo na pele a mudança climática, porque onde ele mora, Madri, não existem mais estações do ano. Ou está muito quente ou muito frio. Eu tenho 50 anos. Quando eu tinha 10, morava perto de um parque e amava as estações do ano. Por isso eu me juntei à campanha no navio do Greenpeace. E disse que, como não entendia nada do assunto, então ia ser os olhos e os ouvidos do público.

Ficou surpreso com o que descobriu?

Fiquei alarmado. Porque fui lá e vi. Estava cercado por pessoas que são especialistas e estão fazendo isso há 20 ou 30 anos. O capitão do navio está nessa função há 30 anos. Foi preso na Rússia porque atacou refinarias. Ele esteve em todas as partes e está alarmado com a velocidade da mudança. E na Antártida, ele disse que era algo “imparável”. Minha resposta então foi: o que posso fazer para ajudar? A única coisa que sei fazer são filmes. Então sugeri fazer o documentário.

Está mais otimista?

Não. Agora tenho as informações – e há muitos dados. Mas esse também é um problema, a fadiga. Fora isso, há nossa incapacidade de imaginar um futuro de extinção. Nosso cérebro não é preparado para isso. Então, como podemos estar preparados para a morte do mundo como o conhecemos hoje? A questão é justamente essa, o que dizer e mostrar para alguém que não ouve? A analogia é como um trem indo em alta velocidade em direção a um muro. A questão não é afastar o muro, mas parar o trem. E a verdade é que podemos só diminuir a velocidade, de forma que o impacto seja mais leve. Essa é a imagem que mantenho na cabeça porque pensar em montanhas caindo ou ondas de 50 metros é algo impensável. Mesmo num filme não parece realista.

Quem decidiu o que mostrar?

Não houve exatamente uma decisão. Não sabíamos o que íamos filmar. A única coisa que pedi foi que não se transformasse num projeto de vaidade. Concordei que a câmera tinha de seguir alguém, e que esse alguém tinha de ser eu. Porque eu sou o espectador. E sou um ator, um homem de ação, então queria mostrar. Queríamos mostrar a beleza porque dá para perceber a fragilidade. E isso dá medo. Ouvíamos constantemente o barulho de icebergs se desprendendo. A bordo, às vezes nevava, às vezes estava de casaco, e outras, de camiseta. Era verão na Antártida, mas é a Antártida. Não era para ser assim.

Mudou hábitos depois dessa viagem?

Sim, e estou tentando fazer mais. Mas não quero entrar em detalhes porque não sou exemplo de nada. Este é um dos joguinhos que gostam de jogar, colocando a culpa na gente. E não é nossa culpa. Somos consumidores. Sim, há quem não dê a mínima, mas a maioria de nós não vai jogar lixo na praia. Tudo conta, reciclagem é importante e tal. Mas nada vai mudar realmente a não ser que sejam implementadas políticas. Por isso, o movimento da Greta Thunberg é tão importante, porque esses jovens não estão brincando e sabem para quem direcionar seus questionamentos. Eles sabem que vão sofrer na pele e não acham isso justo. E estão dispostos a virar o mundo de ponta cabeça para que as coisas mudem, porque a forma como está não funciona. E eles dizem: nós somos seus futuros consumidores e eleitores e estamos de olho.

Você esteve numa mesma reunião que a Greta, e a sala estava vazia. Muita gente a desqualifica por ser uma menina…

Estamos falando de cabeças vazias como Bolsonaro, Trump, Salvini. E alguns da extrema direita do meu país. Mas essas pessoas vão passar. E nós ficaremos. Essa é a boa notícia. Essas pessoas que estão negando o que é evidente e estão apoiando uma política criminosa, como a de Bolsonaro, com a crise na Amazônia são também criminosas. E são essas mesmas pessoas que estão rindo de uma menina de 16 anos e insultando-a. Eles deveriam ter vergonha. Mas eles passarão, nós ficaremos. Greta ficará.

Mas podem causar muita destruição.

Claro. E estão causando. Veja a Amazônia, veja as outras políticas que não têm a ver com o clima, mas com a imigração.

As gerações mais novas precisam ser educadas, não?

Sim, mas eles têm muito mais consciência do que eu tinha aos 16. Tenho orgulho disso. E é neles que reside o meu otimismo, nos milhões que fazem greve todas as sextas. Temos de dizer aos governos: parem de me enrolar. Mudem as políticas. Não venham com palavras e promessas vazias. Mudem.

Tem esperança de que os políticos vão mudar?

Encontrei pessoas que pareciam proativas. Mas vejo os candidatos na Espanha, e ninguém está falando disso.

Engajamento

Javier Bardem não é o único ator a se preocupar com a destruição do meio ambiente. Leonardo DiCaprio, por exemplo, fez documentários sobre o assunto e tem uma fundação com seu nome para causas ambientais.

Edward Norton é embaixador das Nações Unidas para a biodiversidade. Jane Fonda tem protestado todas as sextas-feiras em Washington – o dia escolhido por Greta Thunberg e outros jovens para exigir medidas contra a destruição do planeta.

A atriz de 81 anos foi presa quatro vezes nos protestos, levando amigos como Ted Danson, Rosanna Arquette e Catherine Keener. O ator e cineasta Robert Redford tem militado desde os anos 1970 por causas ambientais. O cineasta James Cameron e sua mulher, Suzy Amis Cameron, também lutam por questões como essa há anos.

Avatar, claramente, é um filme de defesa do meio ambiente. O ator Matt Damon age em defesa da água limpa em países em desenvolvimento. A atriz Julia Louis-Dreyfus também briga por água limpa, pela criação de parques e pela pressão por legislação para financiar ações de conservação.

Don Cheadle e Mark Ruffalo, companheiros de Vingadores, apoiam soluções para energia limpa e antifraturamento hidráulico (método controverso de extração de petróleo e gás natural).

Arnold Schwarzenegger implementou medidas de defesa contra a mudança climática quando foi governador da Califórnia e continua sua defesa por causas ambientais. No Brasil, Rita Lee está escrevendo livros infantis sobre o meio ambiente, e a atriz Christiane Torloni dirigiu um documentário sobre a Amazônia.

Agência Estado

Amyr Klink mostra preocupação com a piora da qualidade da água


  

                                         

  

   O navegador Amyr Klink esteve em Belo Horizonte no dia 12 de setembro para falar sobre um dos bens mais preciosos de toda a humanidade, mas que, de maneira contraditória, não tem recebido o devido cuidado que merece: a água.   
   Klink, que também é escritor, participou do II Congresso Internacional de Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, organizado pela Escola Superior Dom Helder Câmara, conhecida por ser especializada em Direito e por sua preocupação com o meio ambiente. 
   O tema do II Congresso foi “Água – bem ambiental mais precioso do planeta Terra”. Em entrevista exclusiva, Amyr Klink demonstrou preocupação com a piora da qualidade da água, em especial nas proximidades dos grandes centros urbanos. 

   “É um problema difícil, porque as cidades incharam com a migração. O campo ficou vazio, 80% da população está na periferia das cidades grandes e médias e, evidentemente, isso é difícil, porque invadem área de mananciais, moram em morros e prejudicam a qualidade da água”, acredita o navegador. 

   Além disso, Amyr Klink fez algumas considerações empíricas sobre as 42 expedições feitas por ele à Antártica. Ele relatou que a degradação visível dos oceanos não foi o fato mais alarmante nesses 50 anos de experiência. 

   “No fundo, o que mais chamou minha atenção não estava ligado aos oceanos, mas sim aos rios que desembocam nos oceanos. Problemas como a erosão acelerada de poucos anos pra cá por causa de desmatamento, de uso incoerente da terra e de exploração extrativista de minério. Depois, a degradação da qualidade da água próximo aos grandes centros urbanos”, elencou.

            
Cidades flutuantes

   O Brasil detém quase 14% de toda água doce do mundo. Porém,  ela é mal distribuída. Enquanto falta água no Nordeste, sobra no Sudeste. A Região Amazônica, por exemplo, abriga 74% da disponibilidade da água do Brasil.

   “Se você vai ocupar uma região como a Amazônia é muito mais inteligente fazer cidades flutuantes, mas a gente diz que não pode e vira as costas para todo tipo de ocupação irregular. Não pode ocupar o mangue, mas a gente permite a urbanização desregrada de todos os manguezais em áreas urbanas do Brasil”, criticou Amyr Klink.

‘Máquina ignorante e inútil’ 

   Amyr Klink criticou também a importância que a sociedade deu para o carro nos últimos anos. “Temos outra patologia recente, que é essa obsessão brasileira com essa máquina ignorante e inútil que é o carro. De repente, de 50 anos pra cá, a gente achou que a solução do mundo é o carro e nos esquecemos das hidrovias naturais”, disse.

   “Em algum momento da nossa história e da nossa formação cultural a gente resolveu virar as costas para o mar. Não somente para o mar, pois começamos a tratar os rios como lixeira e não como via de transporte, de lazer, de preservação e de sobrevivência”, salientou. 

   O palestrante destacou ainda que caminhamos para um desastre, pois o desperdício é grande, porém não queremos abrir mão da comodidade e o reaprender a viver de maneira simples, pura e objetiva é um grande desafio.

Educação ambiental

   Direito ambiental é o foco do mestrado e do doutorado da Escola Superior Dom Helder Câmara. Amyr Klink destacou a importância da educação no processo de valorização da questão ambiental e elogiou a realização do congresso. 
   “A função da escola é exatamente processar a informação em quantidades brutais, incentivar o trânsito do conhecimento para transformar isso em algo. E esse desafio essa escola tem desempenhado”, disse Amyr. 

Confira AQUI a entrevista exclusiva com Amyr Klink

 

Fonte e fotos: Dom Total

‘Amazônia está à beira de um colapso’, diz cientista brasileiro no Sínodo


‘Estamos vendo o aumento do desmatamento e das queimadas em 2019. Um aumento muito significativo’, alerta cientista. (Victor Moriyama/AFP)

Por Mirticeli Medeiros* 
Especial para o DomTotal

Cidade do Vaticano  – No Sínodo da Amazônia que acontece em Roma até o dia 27 de outubro, ele já discursou diante do papa Francisco. Na qualidade de especialista convocado pelo pontífice para tratar de questões cruciais, o cientista brasileiro, Nobel da Paz em 2007, explicou aos bispos quais os riscos do aquecimento global, tema que lhe rendeu reconhecimento internacional. Propôs à assembleia sinodal a instauração de uma bioeconomia e disse que a Amazônia está fadada à extinção, caso algumas medidas não sejam tomadas o quanto antes.

Em entrevista ao Dom Total, o pesquisador fala sobre a região à qual dedica a sua vida desde a década de 70. Suas teses sobre a “savanização” da floresta tropical em decorrência do desmatamento e uma nova perspectiva de desenvolvimento sustentável para a amazônia fizeram dele um dos maiores especialistas na floresta. Nesses dias, em Roma, ele se uniu ao papa Francisco na promoção de uma ecologia integral, após uma vida inteira dedicada às questões amazônicas.

Dom Total – Dr. Carlos Nobre, primeiramente, quais impressões o senhor colhe desse sínodo? Como o senhor avalia essa mobilização da igreja pela floresta?

Carlos Nobre –Eu sinto que o sínodo traz uma união muito maior e principalmente a elevação da preocupação a nível mundial, no momento em que o papa manifesta essa preocupação, no momento em que o papa entende e amplia o conceito de casa comum da Laudato Si, a casa comum planeta, e o risco que estamos correndo com as mudanças climáticas. Ele escolhe uma região crítica que é a Amazônia, que é o pilar dessa casa comum, um pilar importante, o qual eu costumo chamar o coração biológico da terra. Esta questão adquire uma visibilidade global, mundial. Ela deixa de ser uma preocupação da ciência ou dos movimentos ambientalistas e passa a ser uma preocupação de todos, até pelo poder de penetração que a mensagem – que as mensagens que se originam da Igreja têm. Não só entre os católicos, mas uma mensagem que atinge os países amazônicos.

*Sugestão de legenda para a foto: O cientista Carlos Nobre nomeado perito do Sínodo da Amazônia por Papa Francisco.
Cientista Carlos Nobre, nomeado perito do Sínodo da Amazônia pelo papa Francisco (Reuters).

Se faz um conceito muito profundo de ecologia integral que pode servir para alterarmos o rumo que nossos países amazônicos adotaram. Sabemos que a situação pode levar a um colapso da floresta amazônica e isso seria um prejuízo para o mundo como um todo, para toda forma de vida e também provocaria o desaparecimento de culturas amazônicas. Esse risco é presente e é muito importante que nós tomemos uma outra atitude em relação à Amazônia e o sínodo certamente tem ajudar a  a dar ênfase a essa questão, uma questão de âmbito global.

Dom Total – O senhor disse que estamos em um ponto de não retorno, se referindo à Amazônia. Explique isso pra gente.

Carlos Nobre – A ciência mostra com clareza que o que nós já observamos na Amazônia, principalmente na porção sudoeste, sul e sudeste da Amazônia boliviana, passando por Rondônia, norte do Mato Grosso, Pará e o leste do Pará e uma parte do Tocantins são os sinais de que a Amazônia está próxima de um colapso. Nós estamos vendo a estação seca nessa enorme região de 3 milhões de quilômetros quadrados já ficando mais longa. As temperaturas da estação seca estão bem mais altas. Além do fenômeno do aquecimento global, que afeta o globo todo e afeta a Amazônia, as temperaturas estão mais altas e nós começamos a ver também um impacto nas próprias espécies de árvores. Algumas espécies de árvores já estão apresentando uma taxa de mortalidade maior do que a ciência conhecia. Então essas mudanças, aparentemente, já têm um impacto. E os estudos científicos identificam que essa é a porção mais vulnerável desse ponto de não retorno. Se não pararmos o desmatamento, se não pararmos o aquecimento global, nós temos o risco de perder 60 e até 70% da floresta amazônica.

Dom Total –  2019 tem sido o pior ano para a Amazônia?

Carlos Nobre – É um ano pior por causa de dois sinais extremamente preocupantes. Existia um otimismo moderado em 2016 e 2017, quando vimos que a emissão dos gases que provocam o aquecimento global pareciam que iam se estabilizar. Então isso gerou um certo otimismo de que nós conseguiríamos estabilizar as emissões e que começaríamos a decliná-las globalmente. O acordo de Paris estabelece esse objetivo em 2030. Porém é muito distante, muito perigoso esperar até 2030. Mas infelizmente, em 2018, as emissões voltaram a crescer e, em 2019, elas crescem mais ainda. E para o nosso lado pan-amazônico, os desmatamentos começaram a crescer nos últimos anos, e tudo leva a crer que aconteceu um grande salto em 2019, principalmente na Amazônia brasileira, mas não só na Amazônia brasileira, também na Amazônia boliviana e na colombiana.

Felizmente, no Norte da Amazônia continua protegido. Mas nessa parte mais vulnerável é onde os desmatamentos cresceram e também os incêndios florestais. E os incêndios, em geral, cresceram muito. A gente também está lutando com essa questão de temperaturas mais altas. E com o período seco ficando mais longo, a floresta está mais vulnerável aos incêndios. A floresta amazônica é naturalmente impenetrável ao fogo. O fogo causado por uma descarga elétrica se propaga por algumas dezenas de metros e depois não há mais matéria combustível, porque tudo é muito úmido. Mas, agora, com a estação seca ficando mais longa, temperaturas mais altas e todos esses ramais de estradas para retirada de madeira, essa proximidade com as áreas de pecuária e a agricultura estão tornando a floresta mais vulnerável aos incêndios. Por isso estamos vendo acontecer muito em 2019.

Daí esses dois sinais alarmantes: o sinal global do aumento da emissão de gases do efeito estufa e o crescimento das taxas de desmatamentos e queimadas. Em 2014, nós tínhamos reduzido muito. Reduzimos 70% na Amazônia brasileira e também na amazônia peruana, boliviana, equatoriana. Então nós estávamos vivendo um momento muito bom. Parou em 2014 e agora estamos vendo o aumento do desmatamento e das queimadas em 2019. Um aumento muito significativo.

Dom Total –  No relatório que o senhor deu a nós, jornalistas, diz que 70% do produto interno bruto da América Latina deriva da zona de afluência de chuvas produzidas pela Amazônia. Há uma ignorância coletiva em relação a esses dados. Como diz Papa Francisco, falta essa consciência de que tudo está interligado?

Carlos Nobre –  O conceito da Laudato Si de ecologia integral é muito poderoso. A ciência já vinha tratando o entendimento de que todas essas dimensões estão interligadas há muito tempo, há muitas décadas. Na verdade, desde que o conceito de ecologia surgiu há cerca de 100 anos. Primeiro, surgiu o conceito de como os seres vivos evoluem biologicamente e depois se falou do papel do homo sapiens que interage com todos os outros elementos. Depois, se agregou o aspecto cultural, econômico… Antes eram coisas muito isoladas. É interessante trazer isso para o mesmo guarda-chuva – digamos assim – para gerar essa consciência de que tudo está interligado. E um elemento afeta o outro. E trazer isso para um conceito que seja facilmente assimilável por toda a população é muito importante. É algo muito ligado ao conceito de sustentabilidade, mas é um pouco mais didático, mais pedagógico, que relaciona as questões culturais, ambientais, sociais e econômicas em um mesmo conceito. E é, de certo modo, um pouco do objetivo quando se fala do desenvolvimento sustentável a longo prazo, pois queremos chegar ao mesmo denominador comum.

O conceito de ecologia integral é muito bom e é bom que ele seja ampliado para toda a sociedade. Que não seja um conceito só estudado pela ciência. É muito positivo que nós percebamos isso e percebamos a ligação entre todos esses elementos. Quanto atacamos a questão ambiental, afetamos a questão econômica, prejudicamos a questão social e vamos também destruir os valores culturais. Então tudo isso tem que caminhar junto. Temos que preservar as culturas, salvaguardar socialmente os mais pobres, criar modelos de economia sustentáveis, que nós chamamos de economias de floresta em pé, uma bioeconomia que valorize muito mais a floresta em pé do que a que substitui a floresta.

A floresta, quando derrubada, ataca o valor cultural, que é o respeito pelos direitos das populações tradicionais da amazônia que podem ser até numericamente menores do que as populações que chegaram à amazônia nos últimos 50 anos, mas nós temos uma obrigação e uma responsabilidade de manter essa diversidade cultural.

Cobertura especial:

*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.

Transgênicos no Brasil: ciência e perspectivas de futuro.


Entrevista especial com Marcos Silveira Buckeridge    

"O Brasil pode assumir um papel protagonista na pesquisa com OGMs para criar um futuro próprio, e não navegar naquele criado pelos outros", aposta o biologista vegetal.

Em 2003, o Brasil regulamentou a entrada de organismos geneticamente modificados – OGMs – no país e formou uma comissão de biossegurança para avaliar e regular a sua utilização. No entanto, para o pesquisador e professor da Universidade de São Paulo, Marcos Buckeridge, se por um lado a decisão organiza o setor e o conduz para não haver excessos, por outro seria um exagero comparável a “usar uma bala de canhão para matar uma pulga”. Isto porque, para ele, “já está muito claro que os transgênicos não oferecem todo aquele perigo que se imaginava aos seres humanos e ao ambiente”.

O pesquisador esclarece que, apesar do receio em relação aos alimentos transgênicos, a técnica em muito se parece com a manipulação biológica tradicional — que busca aperfeiçoar características mais interessantes ou valorizadas em um organismo. Não investir na tecnologia, para Buckeridge, seria um retrocesso para o país, tendo em vista os benefícios que os transgênicos podem trazer. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele defende que o Brasil pode assumir um papel protagonista no assunto, mas para isso é preciso abrir a cabeça “para criar um futuro, ao invés de navegar nos futuros criados pelos outros”.

Buckeridge elenca diversas possibilidades que os estudos na área propõem. “Na saúde, por exemplo, imagine que consigamos sintetizar polímeros contendo glicosamina nos alimentos”, sugere. O composto é utilizado por idosos e atletas para fortalecer as articulações. “Ao invés de tomar cápsulas, isto já poderia vir no próprio alimento.” Outro benefício trazido pelos OGMs seria o de evitar o desmatamento de biomas como a Amazônia. Isto porque, ao produzir plantas com maiores taxas de fotossíntese e de crescimento, poderíamos produzir mais com menor área plantada. Assim, ele afirma: “Se a logística e a distribuição das culturas forem bem pensadas em relação às florestas, seria possível conservá-las e até recuperá-las em áreas que antes teriam sido utilizadas para culturas agrícolas”.

 

 

 

Marcos Silveira Buckeridge possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade de Guarulhos – UNG, mestrado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de São Paulo – Unifesp e doutorado em Ciências Biológicas e Moleculares pela University of Stirling. Durante 20 anos, trabalhou com espécies nativas neotropicais no Instituto de Botânica de São Paulo. Atualmente é professor da Universidade de São Puaulo – USP e atua como diretor científico do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol, CTBE, em Campinas, e como coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (INCT do Bioetanol). Buckeridge é um dos autores líderes do próximo relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) a ser apresentado em 2014.

 

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – No começo do ano você deu algumas entrevistas em que afirmava que o uso de sementes transgênicas no Brasil poderia evitar o desmatamento de alguns biomas. Qual a relação possível entre estes elementos?

Marcos Buckeridge – O meu ponto é que, se utilizarmos técnicas moleculares que nos levem às plantas mais produtivas, com maiores taxas de fotossíntese e crescimento, poderíamos produzir mais com menor área plantada. Neste sentido, se a logística e a distribuição das culturas forem bem pensadas em relação às florestas, seria possível conservá-las e até recuperá-las em áreas que antes teriam sido utilizadas para culturas agrícolas.

IHU On-Line – Nestes 10 anos da presença dos transgênicos no país, como enxerga a discussão sobre o assunto? Acredita que ela tem avançado? E se tem, para onde?

Marcos Buckeridge – O Brasil regulamentou os transgênicos e formou uma comissão de biossegurança. Por um lado, isto é sim uma forma de organizar o setor e conduzi-lo para que não haja excessos. Porém, a forma que isto é feito se parece mais com “usar uma bala de canhão para matar uma pulga”. Creio que já está muito claro que os transgênicos não oferecem todo aquele perigo que se imaginava aos seres humanos e ao ambiente. Em minha opinião, dada a vocação do Brasil para os agronegócios, acho que nosso país está perdendo uma grande oportunidade de assumir a ponta nesta tecnologia. Isto não se dá somente através da pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias, o que já estamos fazendo muito bem, mas principalmente em trabalhar para encurtar o tempo para a aprovação de transgênicos e desburocratizar o processo de tal forma que nós estejamos sempre na frente na produção de novas variedades.

Hoje, a liberação de uma nova variedade obtida por genética clássica e uma transgênica leva mais o menos o mesmo tempo, acima de 10 anos. Se acelerássemos a produção de transgênicos, poderíamos avaliar os impactos dos produtos no mercado com maior rapidez; com isto o nosso mercado seria mais ágil e, inclusive, iria atrair mais negócios para o Brasil não só no setor agrícola, mas em vários setores ligados a ele.

Há riscos? Sim, mas o que temos de fazer é pensar de forma mais ampla e estratégica como país e assumir riscos que possam nos levar a maiores ganhos. Há também formas de acoplar a genética clássica à produção de geneticamente modificados. Muitas vezes, não é necessário transferir um gene de uma planta para outra. Basta engenheirar o sistema para que funcione melhor. Isto já é a engenharia biológica, que seria a técnica em que se remodela o metabolismo de um organismo para fazê-lo funcionar melhor para as finalidades que desejamos. É diferente de transferir um único gene que muda o contexto e faz a planta funcionar um pouco melhor. Hoje já existem técnicas de edição de genoma que permitem a inserção de um gene com precisão cirúrgica. Isto tende a diminuir drasticamente os riscos em relação às técnicas de transformação mais usadas, que inserem genes ao acaso num genoma.

IHU On-Line – O uso dos transgênicos é tido como uma solução para o combate à fome. Este discurso, no entanto, é rebatido por afirmações de que o fim do desperdício (na colheita, no transporte, no varejo) aliado a uma distribuição adequada seriam saídas mais efetivas. O que pensa disso?

Marcos Buckeridge – Definitivamente, o fim do desperdício é um caminho a seguir. Em conjunto com os diversos transgênicos existentes e em desenvolvimento no mundo, tais como os já existentes em soja e arroz, e as promessas para melhorar as respostas a doenças de culturas importantes como mandioca, banana e outras, a produtividade deve aumentar e com isto virão os efeitos de menor custo operacional. Os transgênicos feitos para este fim, na realidade, contribuem muito para a diminuição do desperdício, se considerarmos que menos insumos serão utilizados para produzir uma planta que irá, no fim, ser atacada por um inseto ou microrganismo e nunca será colhida ou utilizada. Até o momento, as tecnologias de transgênicos têm enfocado principalmente produtos para o agricultor, ou seja, algo que levará à melhora do desempenho da lavoura. Este é só o primeiro passo e poderia ser realizado em conjunto com a diminuição do desperdício, fazendo com que tudo se tornasse mais eficiente. O uso da engenharia biológica pode ajudar a diminuir o desperdício através da produção de frutos mais resistentes e com formas mais adequadas para transporte, sementes mais resistentes ao ataque de insetos e microrganismos.

Mas a engenharia biológica vai muito além disso. Com ela podemos desenhar características especiais nos alimentos, incluindo, por exemplo, substâncias benéficas aos seres humanos. Já foi desenvolvida uma variedade de maçã que não sofre oxidação e, portanto, não fica marrom quando cortada. Isto é importante, pois vários produtos poderiam utilizar o fruto, ampliando as suas aplicações e seu mercado. Na saúde, por exemplo, imagine que consigamos sintetizar polímeros contendo glicosamina nos alimentos. Estes são aqueles compostos que as pessoas mais velhas e os atletas têm que tomar para fortalecer os ligamentos dos joelhos e ombros. Ao invés de tomar cápsulas, isto já poderia vir no próprio alimento. Este é só um exemplo que ilustra algo não relacionado à fome, mas que pode ser muito benéfico para uma população que está envelhecendo, como a brasileira. Neste caso, imagine os benefícios em termos de menor frequência em hospitais, maior produtividade de idosos. Isto não geraria mais trabalho e preservaria mais a riqueza da sociedade?

IHU On-Line – Como biólogo e relator do IPCC, como percebe a expansão da fronteira agrícola em áreas como a Amazônia em relação aos perigos para o clima e a perda de biodiversidade?

Marcos Buckeridge – Apesar das estimativas de que precisaremos aumentar 70% a produção de alimentos até 2040 e de que o Brasil seria um dos poucos lugares com área agricultável para suprir essa demanda, acredito que não precisemos de áreas da Amazônia para isto. Com o aumento da eficiência esperado com o uso da engenharia biológica e ao mesmo tempo com as estimativas de que as populações em todo o mundo estão envelhecendo, teremos, sim, que focar na quantidade, daí o uso da engenharia biológica para melhorar a produtividade agrícola, mas outro foco será a qualidade dos alimentos.

Como todos sabem, um dos principais fatores que impulsionam as Mudanças Climáticas Globais é o aumento de gás carbônico na atmosfera. Já há vários trabalhos, inclusive nossos, demonstrando que a qualidade dos alimentos deve cair. Por exemplo, em soja, já se verificou que há uma queda em proteínas e em aminoácidos essenciais da ordem de 7% em plantas cultivadas na atmosfera esperada para meados do século XXI. Vimos algo parecido em feijão. As consequências disso podem ser bastante impactantes no médio e longo prazo nas populações. Esta queda de qualidade poderá levar a um aumento de consumo para suprir o déficit de proteínas. Mas, com isto, haverá mais consumo de carboidratos e lipídeos, agravando ainda mais os problemas de obesidade, o que leva ao aumento de doenças cardiovasculares, e assim por diante.

Este fenômeno é chamado de teleconexão, que é quando um evento desencadeia uma série de outros eventos, todos conectados entre si. Uma forma de evitar esta e outras cadeias de teleconexões seria engenheirarmos as plantas para que elas mantivessem o mesmo nível de proteínas mesmo com o aumento no gás carbônico atmosférico. Isto seria uma forma de nos adaptarmos aos impactos das mudanças climáticas. Ao mesmo tempo, fazer com que plantas produzam mais proteínas pode ser benéfico hoje para ajudar a melhorar a nutrição.

IHU On-Line – Uma das suas áreas de pesquisa é a cana-de-açúcar. Como está atualmente a pesquisa da cana geneticamente modificada no país?

Marcos Buckeridge – Os avanços, desde 2008, têm sido incríveis na área científica. Com a montagem de forças-tarefa científicas que fizemos durante este período, como o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol e o Programa BIOEN da FAPESP, vários grupos de pesquisa conseguiram detectar um grande número de genes de cana relacionados à degradação da parede celular, fotossíntese e metabolismo de carbono e resistência à seca, que já estão permitindo os primeiros experimentos em que visamos engenheirar biologicamente a cana. No caso de resistência à seca e em parede, já há iniciativas de grandes empresas para o lançamento de variedades modificadas geneticamente. Que se saiba, estas são ainda variedades que terão um único gene inserido para melhorar a planta. Já a engenharia biológica da cana está a caminho.

Temos conjuntos de genes que são responsáveis, na cana, pela degradação de suas próprias paredes. Estamos a caminho de produzir plantas engenheiradas para ativar este mecanismo sob o nosso controle. Com isto, poderíamos ativar o processo de amolecimento da parede ainda no campo, de forma que haja melhora tanto na extração do açúcar, pois o interior das células se tornaria mais acessível, como seria mais fácil realizar o processo de segunda geração (o etanol celulósico) com o bagaço que sobrar deste mesmo processo. Pesquisadores do grupo do INCT produziram plantas geneticamente modificadas de cana que têm a lignina alterada. Isto é importante, pois a lignina é um dos principais entraves no processo de produção de etanol de segunda geração.

Este esforço vem sendo feito em uma cooperação entre grupos brasileiros de pesquisa que estão sequenciando o genoma da cana, os que estão estudando vários aspectos da fisiologia da planta e os que são capazes de transformá-la geneticamente. Tudo isto sem perder de vista o geneticistas clássicos, que conhecem profundamente a genética da cana e que são os que estão desvendando os mapas genômicos dela.

Somando tudo isso, os produtos deverão se multiplicar nos próximos anos. Eu acredito que teremos plantas de cana engenheiradas de diferentes formas que poderiam ser utilizadas para diferentes aplicações. Poderemos combinar tudo em plantas que seriam mais resistentes à seca, a doenças, com maior taxa fotossintética e crescimento e ao mesmo tempo adaptadas para a produção de açúcar e etanol. É a isto que eu chamo projeto supercana. As consequências do projeto supercana são um aumento de produtividade e considerável produção do etanol de segunda geração e, consequentemente, diminuição de custos para os processos agrícola e industrial. Aplicar tudo isso na indústria e transformar em produtos será o grande desafio nos próximos 10 anos. Aqui vemos a importância de diminuir a parcela burocrática, pois mesmo com a ciência avançando tão rápido, a tecnologia corre o perigo de ficar emperrada por causa de comissões, documentos, etc. O Brasil tem que ficar atento a isto, sob pena de perder sua posição na dianteira da produção de etanol sustentável, que hoje ele detém no mundo.

IHU On-Line – Em países que desenvolvem pesquisa com a cana, um dos grandes escopos é o aumento da biomassa para incrementar a produtividade de biocombustível. Como percebe a relevância desta pesquisa tendo em vista previsões de crise energética?

Marcos Buckeridge – O etanol de cana pode e vem ajudando na produção de energia, principalmente no Brasil e nos Estados Unidos. No Brasil, conhecemos bem o sistema de produção de automóveis flex. Nos EUA, o etanol vem sendo introduzido de forma muito similar ao que foi feito no Brasil durante o Programa Proálcool, isto é, com o álcool sendo adicionado gradativamente à gasolina.

No entanto, o etanol é apenas parte da solução para a crise energética. Por exemplo, nas Américas do Sul e Central juntas, 80% da energia renovável vem de hidrelétricas. A demanda de energia nesta região e no mundo deve aumentar muito com a entrada da China como um grande consumidor de energia e também com o desenvolvimento de países como a Índia e o Brasil. A produção de biocombustíveis é, sim, muito importante e devemos continuar trilhando este caminho.

Porém, é possível que as descobertas biológicas relacionadas ao controle da fotossíntese sejam ainda mais impactantes em melhorar a eficiência de captura da luz solar e com isto aumentar a produção de energia de uma forma muito mais intensa. O desenvolvimento das tecnologias de fotovoltaicos  vem caminhando rapidamente neste sentido. Pode ser que, no futuro, tenhamos híbridos com a introdução de proteínas fotossintéticas nos sistemas de captura fotovoltaicos. Eu vejo um caminho bastante promissor nesta fusão da biologia com a física e a química, e é aí que as pesquisas em cana podem ajudar num processo mais amplo de como lidar com a crise energética mundial.

IHU On-Line – Entre os riscos apontados nas pesquisas com transgênicos, muito se fala dos perigos para a saúde humana. Acredita que os benefícios trazidos são suficientes frente aos possíveis riscos irreversíveis para a humanidade?

Marcos Buckeridge – Até o momento, há muito pouco que ateste um efeito irreversível sobre a saúde humana relacionada aos transgênicos. Temos de lembrar que a forma que até agora utilizamos a genética é muito parecida com modificar geneticamente uma planta utilizando ferramentas da biologia molecular. Já temos alguma experiência com os transgênicos, principalmente nos EUA, que remonta a cerca de 20 anos.

Já dei alguns exemplos de transgênicos que podem melhorar a saúde. Com a engenharia biológica, há inúmeras possibilidades. Neste sentido, o Brasil parece estar se movendo. O Centro de Gestão de Estudos Estratégicos junto à Embrapa está montando um plano estratégico, com a participação de cientistas brasileiros e estrangeiros, que visa colocar o Brasil como um dos expoentes mundiais na produção e inovação em alimentos. A engenharia biológica deverá ter um papel central neste futuro se o Brasil realmente quiser chegar lá.

Eu acredito que o uso da engenharia biológica deverá trazer um enorme benefício para a saúde das populações, pois a capacidade de inovar na produção de alimentos que previnam doenças, que impactem menos o ambiente, diminua o desperdício, tudo isso pode ser alcançado de uma forma muito mais rápida e eficiente com esta técnica, principalmente se acoplada à genética clássica.

IHU On-Line – No caso dos riscos para o meio ambiente, há relatos de que as plantas geneticamente modificadas estariam gerando insetos e plantas daninhas super-resistentes a herbicidas e inseticidas. Também há o medo de o pólen de uma área transgênica contaminar outra livre de transgênicos. Qual a sua opinião sobre isso?

Marcos Buckeridge – Este é um fenômeno natural. Cada vez que produzimos uma variedade resistente a uma doença, os vetores destas doenças, como microrganismos e insetos, sempre terão em suas populações alguns indivíduos que são resistentes. Com o tempo, estas populações podem aumentar e aquela resistência deixa de existir do ponto de vista agrícola. Esta nova população é resistente, porque ela tem genes ou conjuntos de genes que conferem esta característica. Que saiba, não há mecanismos que possam levar um processo de resistência colocado em uma planta de uma determinada cultura, de soja, por exemplo, para plantas daninhas.

Geralmente, as estratégias que têm sido utilizadas por grandes empresas, até onde tenho acesso à informação, têm sido formuladas com muito cuidado. São feitos inúmeros testes antes que uma nova variedade seja lançada. Sobre uma área contaminar outra, isto depende do contexto, mas obviamente se o pólen de uma área é levado a outra e houver fecundação (obviamente da mesma espécie), o transgene deverá passar para as próximas gerações. No entanto, na maioria dos casos, o plantio é feito através de sementes produzidas especificamente para isto. Assim, o escape do polén, pelo menos nestes casos, não tem nenhuma consequência, pois não é assim que produzimos as sementes que usamos em agricultura.

Sobre a questão ambiental, uma ideia bem polêmica é a de que possamos usar transgênicos para remodelar florestas. Por exemplo, imagine se pudéssemos acelerar a regeneração de florestas de forma que leve a metade ou até um quarto do tempo que normalmente se leva para ter uma floresta madura? Neste caso, podem-se usar técnicas de terapia gênica em que certos genes estejam ativos numa fase da vida da árvore, mas que este gene seja silenciado quando o crescimento está completo. Isto nos ajudaria a acelerar a recuperação de florestas e a melhorar os serviços do ecossistema. Isto ainda parece estar muito longe de acontecer, pois estamos começando agora a investigar os genes de plantas nativas, mas devemos lembrar que a tecnologia e suas aplicações crescem exponencialmente, e não linearmente. Este futuro, portanto, pode chegar bem antes do que imaginamos. Já vi apresentações de pesquisadores chineses que ambicionam sequenciar os genomas de todas as espécies nativas da China. O que será que eles querem fazer com esta informação?

IHU On-Line – Deseja acrescentar mais alguma coisa?

Marcos Buckeridge – No Brasil, para que possamos “destravar” a sociedade em relação aos enormes benefícios às pessoas, ao país e ao mundo que a engenharia biológica pode trazer, será necessário promover uma grande mudança cultural. Para isso, as questões éticas sobre esse assunto deveriam ser mais discutidas, mas ao mesmo tempo a informação deve chegar à população de uma forma compreensível, mas sem que se perca de vista a profundidade e complexidade do assunto. A sociedade brasileira tem um medo e um desprezo pela complexidade que é preciso parar. Temos que pensar mais e mais longe. Não podemos nos contentar com a informação que já vem pronta e acharmos que aquilo é a palavra final. Entender a complexidade é ampliar a consciência, e as sociedades que melhor fazem isto são as que dominam o mundo. Não poderíamos ser — ou pelo menos querer ser — uma delas?

Hoje a palavra DNA já está tão popularizada a ponto de ser utilizada de forma analógica por empresas e até partidos políticos. O Brasil, tradicionalmente, é conservador, sempre aguardando que uma tecnologia seja desenvolvida primeiro nos EUA, no Japão ou pelos colonizadores europeus. Se quisermos realmente fazer algo que mude o mundo e o conduza para o que achamos ser uma boa direção, precisamos fazer com que a nossa sociedade seja mais arrojada, tanto no pensar como no fazer. Não adianta termos os nossos cientistas contribuindo para a literatura mundial e produzindo, de graça, aquilo que vai ser usado pelos países mais arrojados para gerar as tecnologias que, depois, iremos comprar. Precisamos mudar isto, e esta mudança não depende dos transgênicos, mas sim de nós mesmos “abrirmos as cabeças” para criar um futuro, ao invés de navegar nos futuros criados pelos outros.

 

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Fonte: IHU – Unisinos