Os direitos humanos e a violência social.


Entrevista especial com Salete Valesan

“Promover o desenvolvimento sem considerar a garantia dos direitos humanos não vai ajudar a superar as desigualdades que existem na nossa sociedade atual”, afirma a pedagoga.

Foto: INESC

“Estamos longe de ter justiça social, política, ambiental e econômica como princípios que nos regem na vida em comunidade. Quanto mais na dinâmica do mercado, que alimentamos e reproduzimos em forma de desenvolvimento. Promover o desenvolvimento sem considerar a garantia dos direitos humanos não vai ajudar a superar as desigualdades que existem na nossa sociedade atual”, destaca Salete Valesan, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ao comentar a realização do Fórum Mundial de Direitos Humanos – FMDH, organizado em dezembro de 2013 em Brasília.

Salete Valesan é pedagoga e psicopedagoga. É mestre em Educação pela Universidade de São Paulo – USP, coordenadora executiva na Sede Brasil da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais – Flacso e coordenadora da área de Participação, Sociedade Civil e Processos de Mobilização da mesma instituição. Participa da militância dos movimentos sociais e populares, incluindo as organizações do Fórum Social Mundial e do Fórum Mundial de Educação. De 1980 a 2003, atuou como professora e coordenadora pedagógica nas redes pública e privada de ensino em São Paulo.

Confira a entrevista.

Foto: UNILAB

IHU On-Line – Quais foram os principais objetivos do Fórum Mundial de Direitos Humanos – FMDH realizado em Brasília?

Salete Valesan – Promover um espaço de debate público sobre direitos humanos no mundo, em que sejam tratados seus principais avanços e desafios, com foco no respeito às diferenças, na participação social, na redução das desigualdades e no enfrentamento a todas as violações de direitos humanos.

IHU On-Line – Houve equilíbrio na representação de organizações estatais e dos movimentos sociais entre as 730 entidades envolvidas na organização das atividades?

Salete Valesan – Podemos dizer que sim. Uma das diferenças entre o Fórum Social Mundial – FSM e o Fórum Mundial de Direitos Humanos – FMDH é esta. No FSM o Comitê Organizador é composto somente pela sociedade civil e no FMDH é composto pela representação da diversidade da sociedade. Isso foi fundamental para o resultado do Fórum.

IHU On-Line – Quais foram os principais debates realizados? Que deliberações foram produzidas?

Salete Valesan – Os temas gerais foram: os direitos humanos como bandeira de luta dos povos – com foco nos movimentos sociais; a universalização de direitos humanos em um contexto de vulnerabilidades; e a transversalidade dos direitos humanos.

Já as deliberações são diversas. Como a criação e fortalecimento de campanhas, redes e fóruns; o lançamento da próxima Conferência Nacional de Direitos Humanos para 2015; a consolidação de grupos de estudos, pesquisas e publicações; a decisão das próximas edições do FMDH – em dezembro de 2014 no Marrocos e em dezembro de 2015 na Argentina.

IHU On-Line – O direito à comunicação foi um dos temas debatidos no FMDH. A promoção dos direitos humanos encontra espaço nas redes sociais? E nas mídias tradicionais?

Salete Valesan – Nas redes sociais, mídias livres e alternativas, sim, pois faz parte da sua natureza. Nas mídias tradicionais, ao mesmo tempo que existe uma possível promoção dos direitos humanos, também existe um culto ao sensacionalismo que sempre promove mais espaço para a divulgação da perversidade, da violência e da reprodução do preconceito.

IHU On-Line – O que a recente publicação de um anúncio no sítio Mercado Livre vendendo crianças negras, em suposto tom humorístico, revela sobre o respeito aos direitos humanos em nossa sociedade?

Salete Valesan – Revela uma sociedade medíocre e preconceituosa. Que está perdendo valores fundamentais da vida em grupo, como a ética, a liberdade, a justiça e o estado democrático de direitos.

IHU On-Line – De que instrumentos a sociedade brasileira dispõe hoje para exercer o direito à comunicação?

Salete Valesan – Das ruas para as mobilizações, das tecnologias livres e criadas pela militância, dos espaços de mídia livre e alternativa, das redes sociais, de algumas legislações, dos espaços de atuação na comunicação como os conselhos, comissões e comitês e da sua militância corajosa que atua por meio de campanhas, redes, movimentos sociais, ONGs, jornais, rádios, TVs, tabloides, muros, paredes, internet, disque denúncias, Lei do Acesso à Informação… Pouquíssimo na grande imprensa, que define e organiza o que é direito à comunicação a partir do mercado.

IHU On-Line – Nesta mesma perspectiva, o que pode ser dito sobre os direitos das mulheres?

Salete Valesan – Aqui no Brasil há um paradoxo. Ao mesmo tempo que avançamos em políticas públicas para promover e garantir os direitos das mulheres, incluindo aqui a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres, o Conselho Nacional e a Lei Maria da Penha, ainda temos um índice alarmante de violência de toda a natureza contras as mulheres. Se considerarmos as meninas, as adolescentes e as jovens que sofrem violência, teremos um quadro assustador.

IHU On-Line – Em que aspectos a sociedade brasileira precisa evoluir em relação aos direitos de grupos sociais marginalizados?

Salete Valesan – Na aceitação de que é excludente, injusta e preconceituosa. Estamos longe de ter justiça social, política, ambiental e econômica como princípios que nos regem na vida em comunidade. Quanto mais na dinâmica do mercado, que alimentamos e reproduzimos em forma de desenvolvimento. Promover o desenvolvimento sem considerar a garantia dos direitos humanos não vai ajudar a superar as desigualdades que existem na nossa sociedade atual.

IHU On-Line – Poderia citar exemplos de iniciativas em andamento no Brasil que contemplem a garantia e a defesa dos direitos humanos?

Salete Valesan – Muitas, tanto pelo Estado como pela sociedade civil. Seguem alguns: Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA; Estatuto da Juventude; Estatuto do Idoso; Lei Maria da Penha; Lei de Acesso à Informação – LAI; Comissão Nacional da Verdade; Comissão da Anistia; Pastorais da Criança, da Juventude, da Terra e a Carcerária; Programas de Proteção de Testemunhas, de Vítimas e de Defensores dos Direitos Humanos; Ouvidorias; Disque Denúncia; Diretrizes Nacionais da Educação em Direitos Humanos; Plataforma DHESCA; Mecanismo de Combate à Tortura; Secretaria de Políticas para as Mulheres; Secretaria de Política de Promoção da Igualdade Racial; Secretaria de Direitos Humanos; e Conselhos Nacionais.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?

Salete Valesan – É fundamental a integração dos três poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – com a sociedade brasileira para construir o que o Fórum Mundial de Direitos Humanos deixou como legado que é uma nova cultura dos direitos humanos no Brasil.

(Por Luciano Gallas)

Fonte: IHU – Unisinos

 

Greenpeace acusa multinacionais americanas de cumplicidade no desmatamento no Brasil


Greenpeace registrou a colheita de soja plantada em área embargada, onde não deveria haver produção, dentro do Condomínio Cachoeira do Estrondo Foto (Victor Moriyama / Greenpeace)

Duas gigantes agrícolas, as americanas Cargill e Bunge, são acusadas, em um relatório recente, pelo Greenpeace de cumplicidade no desmatamento e expropriações no Brasil, o que as duas empresas negam.

No boletim “Cultivando Violência” tornado público na terça-feira (3), a organização de defesa do meio ambiente aponta os vínculos da Bunge e Cargil, maiores exportadoras da soja produzida no Cerrado brasileiro, com uma fazenda em particular.

Aberta em 1978 em Formosa do Rio Preto, no estado da Bahia, a fazenda Estrondo, que explora suas terras e aluga uma parte a fazendeiros, estende-se oficialmente sobre 305.000 hectares.

O Greenpeace afirma que Cargill e Bunge “operam silos dentro dos limites da propriedade e compram soja diretamente de suas plantações”.

Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, a fazenda Estrondo é fruto da “apropriação ilegal de 444.000 hectares” de terras, incluindo uma parte do território de comunidades tradicionais, estabelecidas na região há mais de 200 anos.

Enquanto uma decisão judicial provisória de 2017 garantiu a propriedade de 43.000 hectares a essas comunidades, os habitantes locais denunciam a construção em seu território de guaritas para vigias pagos pela fazenda Estrondo, bem como várias tentativas de intimidação e de violência contra eles, uma versão rejeitada pelos responsáveis da fazenda.

A fazenda Estrondo também é acusada de “desmatamento ilegal”, “inclusive com alegações de que licenças de desmatamento na propriedade tinham sido obtidas de forma fraudulenta” em 2002.

O Greenpeace afirma ainda que identificou em abril uma safra de soja “cultivada ilegalmente em uma área embargada” pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama), o que o grupo também contesta.

“O fato da Cargill e Bunge ainda manterem relações com Estrondo é inaceitável, visto que existe uma série de irregularidades e episódios de violência”, declarou à AFP Cristiane Mazzetti, uma responsável do Greenpeace no Brasil.

90% de rastreabilidade

As duas multinacionais americanas negam qualquer relação comercial com as sociedades proprietárias da fazenda Estrondo.

“Todas as compras de soja na área da Estrondo vêm de produtores arrendatários que adquiriram direitos legais de uso das terras […] A Cargill não fornece e não fornecerá soja de agricultores que desmatam terras em áreas protegidas. Temos controles para impedir que produtos não compatíveis entrem em nossa cadeia”, declarou a Cargill à AFP, acrescentando que seu silo está localizado a quase 60 km das áreas de conflito, sem informar em qual terreno.

A Bunge, que, como a Cargill, está comprometida em desenvolver uma cadeia de produção sem desmatamento, afirma que atingiu mais de 90% de rastreabilidade para suas compras diretas em áreas em risco de desmatamento e que atua em conformidade com a lei brasileira.

“A Bunge não compra ou recebe grãos de áreas embargadas pelo Ibama. Quanto ao silo, não faz parte do Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo e está localizado em propriedade privada da empresa”, declarou a companhia.

“As respostas [da Cargille Bunge] negam as evidências. O grupo Estrondo precisa ser tratado como uma unidade, há um controle compartilhado sobre a terra, bem como decisões relacionadas ao seu uso […] Minimizar sua presença é se esconder de suas co-responsabilidades nesses impactos no contexto da Estrondo”, contestou Greenpeace.

“As empresas já foram comunicadas em junho e setembro […] no entanto, ainda não tomaram nenhuma ação concreta para endereçar o problema”, ressaltou a ONG.

Com dois milhões de quilômetros quadrados, o Cerrado é o segundo maior bioma do Brasil, atrás da Floresta Amazônica. Esta savana já perdeu quase metade de sua vegetação original.

Este nível de desmatamento se explica, sobretudo, pelo forte avanço da agropecuária industrial, em particular na região do Matopiba, último eldorado agrícola do Brasil, onde está localizada a fazenda Estrondo.

Entre 2007 e 2014, quase dois terços da expansão das atividades agrícolas se deu em detrimento da savana e de plantas nativas, ressalta o Greenpeace.

AFP

Barbárie no sul da Bahia: jagunços incendeiam 28 casas e espancam indígenas


         

Foto: Reprodução

 

 

Mais um episódio de extrema violência envolvendo a disputa de terras ocupadas pelo povo Tupinambá ocorreu na Bahia. Desta vez, a cena dos crimes foi o município de Itapebi, localizado no extremo sul do estado, há cerca de 600 km da capital Salvador. Na última sexta-feira (7 de março), por volta das 9h, dezoito jagunços – dentre eles dois ex-policiais – fortemente armados circularam a aldeia Encanto da Patioba, renderam três homens, duas mulheres e duas crianças, espancaram dois idosos e um casal, mataram animais domésticos e de criação, roubaram bens, ameaçaram estuprar uma das mulheres e incendiaram todas as 28 casas da aldeia.

 

“Foi um massacre. Queimaram tudo o que estava dentro das casas: roupa, comida, documentos, tudo. E o que não queimaram, eles roubaram: motosserra, rádio, fogão, celular, motor de farinheira (que gera energia) e um ralador. Mataram cachorro a facão. Atiraram nos perus. Acabaram com nossas galinhas, a gente tinha pra mais de 400 galinhas na comunidade toda. Destruíram nosso canavial. Cataram nossas roças, nossas abóboras. Não sobrou nada”, se indigna o cacique Astério Ferreira do Porto, de 63 anos.

 

Mostrando as marcas da violência deixadas em seu próprio corpo, ele relata que foi jogado no chão e algemado pelos jagunços. Em seguida, apanhou muito, e de todo jeito: paulada, chute, pano de facão, “até de chapéu de couro… também xingaram muito a gente. Tudo pra gente entregar onde estavam as outras lideranças que eles estavam procurando”.

 

Ele conta que os jagunços chegaram de uma vez. A maior parte da comunidade conseguiu fugir para o mato porque foram avisados minutos antes que eles estavam “descendo pra aldeia”. “Seu” Astério, “seu” Preto, de 73 anos, Robinho, “dona” Eliete, 45 anos, e uma mulher, mãe de duas crianças (uma de cinco anos e outra de sete meses) não conseguiram correr a tempo.

 

Continuam o relato, afirmando que com armas apontadas para as suas cabeças, os jagunços portavam pistola 765, espingardas 44 e 12, rifle calibre 38, pistola 380, facão na cintura e até dois fuzis “que talvez sejam R15”. “Eram 18 jagunços e não tinha nenhum desarmado”, afirma Astério, ainda sentindo as fortes dores na perna esquerda, no dorso e na região abdominal.

 

Também com vários hematomas no corpo, principalmente nas costas e braços, Eliete de Jesus Queiroz relata que levou um tapa tão forte no ouvido esquerdo que quatro dias depois do atentado ainda sente tonturas e muita dor. “Eles chegaram a ameaçar que iam estuprar nós. Nossa sorte é que, depois que viram as crianças, eles pararam de bater em nós duas. Mas as crianças ficaram traumatizadas e logo depois o menino vomitou bastante”, relata. Seu Preto, considerado um ancião, e Robinho também foram vítimas da violência dos jagunços e pistoleiros.

 

Após usarem 25 litros de gasolina para incendiarem as 28 casas da Patioba, destruindo completamente a aldeia, os jagunços colocaram os indígenas à força dentro de seus carros e os dois ex-policiais os levaram para a delegacia de Itapebi porque – inacreditavelmente – queriam denunciá-los pelo porte de uma espingarda velha usada para caçar tatu, paca, gavião, “mas que nem prestar muito tava prestando mais, porque tava sem espoleta”, conta Astério.

 

Como o delegado não estava, foram levados para o município de Eunápolis. Mas o delegado local não quis recebê-los, pois se tratava de um fato da jurisdição de Itapebi, para onde voltaram e registraram um boletim de ocorrência, onde os indígenas aproveitaram e relataram toda a barbárie a que haviam sido submetidos. No entanto, absolutamente nada aconteceu com os jagunços. Como mencionado nesta matéria, dois deles são ex-policiais. Somente por volta das 19h, os Tupinambá foram liberados – dos jagunços e pela delegacia.

 

A Polícia Federal, de Porto Seguro, e a Fundação Nacional do Índio (Funai) foram informadas sobre as extremas violências e violações a que foram submetidos os Tupinambá, mas até o fechamento desta matéria ainda não tinham ido à aldeia da Patioba, segundo os indígenas.

 

Na segunda-feira (10), Eliete e Astério, após apresentarem denúncia no Ministério Público Federal (MPF), fizeram exame de corpo delito no Instituto Médico Legal (IML) de Brasília. Na terça, após atendimento médico em hospitais, fizeram a denúncia ao Ministério da Justiça e na manhã desta quarta-feira (12) denunciam a barbárie a que foram submetidos ao Procurador Geral da República (PGR), Rodrigo Janot. À tarde fazem o mesmo na Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.

 

Não se trata de uma mera coincidência

 

Cabe aqui ressaltar que a reunião na PGR havia sido agendada antes deste atentado ter acontecido na aldeia Patioba. Solicitada por organizações indígenas e indigenistas, a proposta é justamente denunciar a crescente violência contra os povos indígenas em várias regiões do Brasil e associá-la a políticos da bancada ruralista que vêm incitando esta violência.

 

Em fevereiro, estas organizações entraram com uma representação na PGR contra os deputados federais Luiz Carlos Heinze (PP-RS) e Alceu Moreira (PMDB-RS) por terem feito afirmações, gravadas em vídeo e veiculadas amplamente nas redes sociais, carregadas de preconceitos e incentivos à violência como solução para os conflitos agrários com os indígenas.

 

Inimigos mais que conhecidos

“O que a gente percebe é que falta vontade mesmo do governo e da polícia de fazer justiça. Aqui, não precisa investigar nada. A gente sabe quem foi que fez isso com o nosso povo. Eles não se escondem. O próprio José Gastão falou pra gente a lista das pessoas que eles querem matar”, afirma José Moreira Campos, o Juquira, uma das lideranças indígenas ameaçadas de morte, que não estava na Patioba quando os jagunços chegaram.

 

De acordo com os depoimentos feitos pelos Tupinambá ao MPF e na PGR, os dois ex-policiais, que também são fazendeiros, Gilmar (cujo verdadeiro nome seria Teodomiro) e José Maciel estavam entre os jagunços e, inclusive, foram os que os levaram para as delegacias. Outros responsáveis pela barbárie apontados pelos indígenas aos órgãos federais são o fazendeiro Peba, Juarez da Silva Oliveira, ex vereador e candidato derrotado do PP à prefeitura de Itapebi na última eleição, e o gerente da fazenda Lombardia, José Gastão. Após a invasão e destruição da aldeia, de acordo com os Tupinambá, a grande maioria dos jagunços se encaminhou para a fazenda Condomínio. “Nós vimos eles entrando na fazenda”, afirma Astério.

 

Além de Juquira e Astério, outros cinco Tupinambá da aldeia Patioba estão ameaçados de morte: o cacique Roberto, o vice cacique Carlos, o ex cacique Jovenal, a liderança Adauto e Jefinho, filho de uma liderança. Juquira conta que eles precisam se retirar da aldeia de tempos em tempos e vivem sempre preocupados com a possibilidade de que as promessas de morte sejam cumpridas. “Eles querem nos matar porque sabem que a gente não vai sair da terra que é nossa. Meu bisavô morreu aqui, meu avô morreu aqui, meu tio morreu aqui. Os parentes da Eliete morreram aqui. Só que a gente não tinha documento da terra. Índio não tinha mesmo documento da terra, mas nós não vamos negociar a nossa terra”, garante Astério.

 

Foto: Reprodução

 

 

A disputa pela terra

Segundo Astério, Juquira e Eliete, o governo federal e a Funai têm uma grande responsabilidade sobre as violências e violações contra os Tupinambá porque não fazem nada em relação à área reivindicada pelo povo como tradicional. “A Funai foi lá em 2005, 2006. Mas é só promessa. Daí, os fazendeiros vão se apossando de terra que é terra indígena e do Estado, vão nos ameaçando e nos matando. O ancião Salomão foi assassinado na Aldeia Patioba há cinco anos, e isso fez com que muitos de nós ficassem com medo e desistissem da terra”, rememora Astério.

 

Os três moravam desde 2002 na aldeia Vereme, mas tiveram que deixar a área por conta de uma reintegração de posse realizada em 2012. “Chegaram a usar até os sem terra contra a gente. Mas depois o fazendeiro da São Brás, mesmo dono da fazenda Lombardia, entrou com liminar contra eles também”, conta Juquira.

 

Após as 35 famílias saírem escoltadas da área pela Polícia Militar e pela Funai, parte da aldeia se dispersou. Apenas alguns foram para a aldeia Patioba, localizada há seis km de distância. A família de Astério e mais duas ficaram por seis meses dentro da sede da Funai e, posteriormente, foram encaminhadas pela própria Funai também para Patioba.

 

De acordo com Astério, o dono das fazendas São Brás e Lombardia se considera dono da área de três alqueires que os Tupinambá ocupam – tanto na extinta aldeia Vereme como na recém destruída Encanto da Patioba, que contava com 31 famílias. “Esta terra está, inclusive, penhorada há mais de 30 anos. Acho que pelo Banco do Brasil”, afirma o cacique.

 

Método antigo: a violência

O aumento da violência contra os povos indígenas na Bahia é evidente e remete aos tempos da ditadura e ao auge do coronelismo no estado, ocorrido nas décadas de 1970 e 1980.

 

Segundo os Tupinambá de Olivença, que moram na região de Buerarema e Ilhéus, desde o início deste ano, vários indígenas foram mortos. Três jovens morreram depois da implantação de uma base do Exército dentro da área já identificada como território tradicionalmente indígena em fevereiro. “Nós não queremos o Exército em nossa terra. Eles nos tratam como bandidos. O que precisa ser feito é a demarcação de nossa terra para que possamos viver em paz”, afirmou ontem a cacique Valdelice, da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, em reunião no Ministério da Justiça.

 

Na área da aldeia Patioba, o mais recente ataque havia ocorrido apenas há cerca de 15 dias, quando o carro de um dos indígenas deixado no porto em Itapebi foi incendiado.

 

Sem casa, suas roças e animais, móveis, roupas, comida e, muitos sem documento, desde o dia 7 de março, os parentes de “Seu” Astério, “dona” Eliete e Juquira dispersaram-se em Eunápolis. “Somos indígenas, mas agora estamos como indigentes”, concluiu com tristeza o cacique.

 

Apesar de viverem no estado onde os colonizadores portugueses chegaram há 514 anos e terem seu histórico, modo de vida e incontáveis processos de resistência registrados em extensa bibliografia, o povo Tupinambá não tem ainda terras homologadas na Bahia. “Até quando será assim?”, parecia a pergunta nos olhos pequenos e sofridos de “seu” Astério.

 

Denúncia do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, publicado pelo EcoDebate, 13/03/2014