Não podemos demonizar o agronegócio, defende especialista


Lavouras devem faturar R$ 391,8 bilhões em 2019. (Reuters)

Patrícia Azevedo

Responsável por 22% das riquezas geradas por ano no país, o agronegócio deve alcançar neste ano um faturamento de R$ 391,8 bilhões na área de lavouras e de R$ 186,3 bilhões em pecuária, segundo dados da Secretaria de Política Agrícola do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Os números são semelhantes aos de 2018, quando o Valor Bruto da Produção Agropecuária (VBP) chegou a R$ 578,2 bilhões, reforçando a importância do segmento para a economia brasileira. Ao mesmo tempo, muitas empresas ainda desrespeitam a legislação e exploram o meio ambiente de forma predatória, agravando problemas como o desmatamento, a perda da biodiversidade e a contaminação do solo, inclusive em áreas de preservação, como a Amazônia.

“Nós temos uma visão negativa do agronegócio pela forma como ele é realizado atualmente – em larga escala, com muitos agrotóxicos. Mas não precisa ser assim. Se você coloca regras e estabelece formas para trabalhar, quem garante que ele não vai cumprir a perspectiva do bem viver? Ou mesmo contribuir para a economia solidária”, apontou Maraluce Maria Custódio, da Dom Helder Escola de Direito. Na terça-feira (29), a professora coordenou a apresentação de trabalhos científicos sobre o tema na 4ª Semana de Estudos Amazônicos (Semea), que prossegue até sexta-feira (1º), em Belo Horizonte.

Para mudar o atual cenário, Maraluce defendeu a criação de políticas públicas e um pensamento social sobre a atividade. Como exemplo, citou a defesa do bem-estar dos animais de produção e interesse econômico, prevista pela Lei de Política Agrícola, pelo Decreto 9.013/2017 e por uma série de Instruções Normativas do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. “São regulamentações muito pesadas nesse sentido”, avaliou. A professora citou também o uso de agrotóxicos, previsto pela Lei 7.802/1989. “O texto não estabelece quantidade de agrotóxicos, mas fala como eles devem ser utilizados. Não é qualquer um, de qualquer forma. Por mais que novos agrotóxicos sejam liberados, há uma preocupação em relação a isso. Mas obviamente faltam políticas públicas”, ponderou Maraluce.

Alerta

As próprias associações e entidades do agronegócio começam a perceber que o futuro da atividade depende da preservação do meio ambiente no Brasil. Em setembro deste ano, 11 entidades brasileiras, entre elas o grupo do setor de carne bovina Abiec, assinaram uma campanha para pedir o fim do desmatamento em terras públicas. O texto também exige a proteção de áreas de conservação no país e a criação de uma força-tarefa do Ministério da Justiça para resolver conflitos por terras públicas de floresta.

De acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a destruição da vegetação nativa e as mudanças climáticas têm potencial para prejudicar o agronegócio porque afetam diversos fatores ambientais de grande influência sobre a atividade agrícola. O principal deles é o regime de distribuição das chuvas – apenas 10% das lavouras brasileiras são irrigadas. Com o desmatamento e o aumento das temperaturas, fatores como umidade, qualidade do solo, polinizadores e pragas serão afetados.

Professora Maraluce Maria Custódio, da Dom Helder.
Professora Maraluce Maria Custódio, da Dom Helder

“O problema é: nós achamos que proteção do meio ambiente e o desenvolvimento social são incompatíveis com o desenvolvimento econômico. E entre os três, o Brasil tem optado só pelo último, esquecendo os outros”, apontou Maraluce. A professora é especialista em Direito Ambiental e Geografia e concedeu entrevista ao Dom Total durante o Semea. Confira:

Como podemos conciliar o agronegócio com a economia solidária e o bem viver?

Nós não temos uma noção real de desenvolvimento sustentável no Brasil, nunca tivemos. Nós desenvolvemos essa mentalidade dentro do Direito e da academia, as comunidades têm tentado construir uma economia solidária, mas não conseguimos ainda enxergar isso como uma forma de negócio. Esse é o problema.

Há comunidades inteiras que vivem de forma solidária. Eu me lembro, quando morava na França, uma coisa muito interessante: você tinha um corredor do supermercado que era para produtos da economia solidária. Eu achava bastante louco. Quando eu entrava lá, tinha café do Brasil. Café de uma região de Minas Gerais que eu nunca tinha ouvido falar, e eles exportavam para a França. Isso também é agronegócio, só que feito pela comunidade.

Precisamos trazer a questão do desenvolvimento sustentável e pensar as três dimensões: a econômica, a social e a ambiental. Sempre falo: o problema é que as pessoas confundem as coisas. A mineração, por exemplo. Ela é necessária, regulamentada, eu tenho como prever e diminuir todos os danos. Um desastre ambiental é outra coisa. O mesmo ocorre com o agronegócio. Não conseguimos viver sem. Só precisamos trazer essas atividades para o desenvolvimento sustentável, não ignorá-las.

O defensor público Johny Fernandes Giffoni, também palestrante da Semea, apontou que o atual governo tem deslegitimado as ações dos órgãos de controle socioambiental. Lembrou também a diminuição do orçamento da Funai, Ibama e ICMBio, entre outros. As ameaças ao desenvolvimento sustentável aumentaram?

O uso de agrotóxicos, por exemplo, não é uma política que vem de agora. Foi o governo Lula que liberou os transgênicos, por uma medida provisória, sem nem ouvir a sociedade. Nós temos uma política de ocupação da Amazônia pela agricultura completamente louca, que vem desde o regime militar. Então não é problema do governo atual. Ele tem demonstrado mais claramente essa política, mas ela já existia antes. E caminha dentro da perspectiva de como nós pensamos a construção do Brasil.

Vamos analisar: os índices de pobreza. Não é que eles aumentaram, eles apareceram de forma mais clara. Estão bem mais exacerbados e chocantes, por causa da crise econômica. A questão do meio ambiente. O desenvolvimento do agronegócio no Mato Grosso vem acontecendo há muito tempo e ninguém se importa. O uso de fazendas na Amazônia, bem como a mudança do Código Florestal, no governo anterior, também aconteceram nessa perspectiva. O problema é a forma como nós pensamos.

Sem um sólido desenvolvimento social, a economia não serve para nada. Se não protegermos o meio ambiente – é isso que estamos vivendo, agora. Em Belo Horizonte, os ventos chegaram a uma velocidade de furação no último sábado (26), isso não tem lógica! Em uma cidade como essa, tamanho calor. Tudo está relacionado. Aquela nuvem que veio do Amazonas e que chegou em São Paulo, aquela chuva negra. Precisamos parar de fingir que essas coisas não existem.

Sempre falo: eu não sou hipócrita. Acho que a mineração tem que existir, o agronegócio é possível. Só que é necessário colocar regras e fiscalização. Hoje não mexemos, porque eles garantem desenvolvimento econômico. Temos que para com isso.

Como promover essa mudança?

Temos que colocar em mente que os políticos são trabalhadores. São nossos representantes, funcionários do povo. Parar com isso de todo poderosos. Se nós não damos um direcionamento adequado, claro que a situação não vai mudar. Só que isso ainda é bastante complexo. Nós temos problemas econômicos muito sérios.

Sempre digo aos meus alunos: é muito complexo pensar o mundo quando você está com fome. Quando o seu filho está com fome. Como é que eu vou chegar para o cara que está debaixo da ponte e falar: olha, está ocorrendo uma audiência pública ali, participa! Nós temos que entender que o desenvolvimento social é sim muito importante. Isso não é socialismo. Isso é a economia liberal. Sem mercado, eu não tenho como desenvolver a economia. E sem classe média um país não existe.

Eu estive na Venezuela ainda no estágio anterior a essa confusão, eles já tinham eliminado a classe média. Eles estavam com classe pobre e classe rica. É uma loucura, e por isso chegou a esse colapso. A classe média é importante. As pessoas têm que ser valorizadas, o trabalho também. Reconhecer os sujeitos na sociedade. Isso quem tem que fazer somos nós. Enquanto nós não nos organizarmos, a situação continuará. A academia também tem um papel importante, de se inserir na comunidade como fornecedor de informações confiáveis, do conhecimento científico. Repito: precisamos discutir essas questões, elas fazem parte da nossa vida.

Dom Total

Cobertura sobre a 4ª Semana de Estudos Amazônicos


O evento acontece entre os dias 29 de outubro e 1º de novembro em diversas instituições ligadas à Companhia de Jesus (Thiago Ventura/DomTotal)

Centro das atenções mundiais nos últimos tempos, a Amazônia ainda é uma grande desconhecida da população brasileira. Reunindo representantes da sociedade civil, do poder público, dos povos amazônicos, de instituições eclesiais e da comunidade acadêmica, a 4ª Semana de Estudos Amazônicos (Semea) é uma resposta a essa lacuna. O evento acontece entre os dias 29 de outubro e 1º de novembro em diversas instituições ligadas à Companhia de Jesus na região de Belo Horizonte, entre elas a Dom Helder Escola de Direito, que recebe grande parte das atividades.

Confira abaixo a cobertura completa do Semea!

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Extrativistas endossam boicote a produtos brasileiros


O CNS continua sendo a principal referência da luta pela preservação do modo de vida do povo da Amazônia. (Reuters)

Patrícia Azevedo

Boicote à comida brasileira. A campanha foi lançada pelo empresário sueco Johannes Cullberg, fundador da Paradiset, a maior rede de supermercados orgânicos da Escandinávia. Em página no Facebook, que contava com 3.176 curtidas nesta quarta-feira (13), o empresário apresenta suas motivações: protestar contra a alta taxa de desmatamento e o uso de pesticidas no país. Cullberg também afirma estar bravo e chateado com a postura do governo de Jair Bolsonaro, e tenta agora convencer seus concorrentes a aderir à campanha, divulgando a hashtag #boycottbrazilianfood.

“Este é o caminho – conversar e expor a situação da Amazônia para os outros países, construir uma consciência mundial. Viajamos para Europa neste ano, para denunciar e fazer essa articulação. Já há supermercados, como a rede sueca, embargando a compra de produtos brasileiros. Atingir a balança comercial, mesmo que pouco, é uma forma de colocar o governo contra a parede”, afirma Joaquim Belo, presidente do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS). Fundado em 1985 por Chico Mendes e seus companheiros, o CNS – então chamado de Conselho Nacional dos Seringueiros – continua sendo a principal referência da luta pela preservação do modo de vida do povo da Amazônia. Além da articulação internacional, a entidade se empenha para construir alianças internas, buscando resultados mais efetivos.

Joaquim Belo, por sua vez, nasceu em 1963, no município de Mazagão, no Amapá, e herdou do pai a vocação para atuar como liderança. Durante passagem por Belo Horizonte, para participar da 4ª Semana de Estudos Amazônicos (Semea), conversou com o Dom Total sobre a importância do evento e o modelo de desenvolvimento econômico brasileiro. Abordou também os principais desafios vividos pelas populações extrativistas, formadas por 180 mil famílias em 693 territórios – o correspondente a 13% da Amazônia. “A Semea é um desses espaços fundamentais para a formação de alianças. A floresta, para alguns, é uma causa. Para a nossa população, é vida. Continuaremos na luta e recorreremos às cortes internacionais, se necessário”, ressalta. Confira a entrevista completa:

Joaquim Belo em debate da Semea
Joaquim Belo em debate da Semea

Como está a situação dos extrativistas? Ela mudou com o atual governo?

A nossa luta na Amazônia nunca foi fácil, enfrentamos muitas dificuldades, mas já foi um pouco “menos pior”. É a primeira vez que temos uma agenda ambiental tão preocupante. Nos deparamos com um governo que se elegeu pelas vias democráticas, mas com comportamento ditatorial. Com uma postura que é extremamente ameaçadora com relação àquilo que sempre tivemos como patrimônio –  a nossa biodiversidade. É um governo que vê a questão ambiental como empecilho ao desenvolvimento do país, de uma ignorância tremenda. Por essa lógica, estão lançando um ataque sobre nós, diretamente, pois dependemos da floresta, dos rios. É um momento seríssimo, mas estamos resistindo e vamos resistir. Como disse meu pai: não há mal que dure para sempre. Precisamos ter paciência e perseverança. Fortalecer as alianças e as parcerias, que sempre foram fundamentais para a nossa conquista.

A Semea tem estimulado essas parcerias? Como o senhor avalia o evento?

A Semea é isto, um espaço que une diversos pensamentos para fortalecer essa agenda comum – a proteção da Amazônia e da biodiversidade. É um evento que reconhece o valor dessa articulação. Nossa principal arma, neste momento, são as parcerias. Além disso, podemos trabalhar melhor a questão econômica. Usá-la contra o próprio governo. A política que se instalou em nosso planeta, pautada pelo fascismo, começa a perder forças. A América do Sul está vivendo um grande movimento neste sentido, um governo fascista acabou de cair na Argentina. Então, estamos vendo um sinal, se o Trump perder nos Estados Unidos, os governos fascistas começam a desmoronar de vez. Enquanto isso, é resistir. Nós não temos outros caminhos, afinal é o nosso modo de vida que está em jogo.

É possível conciliar o desenvolvimento econômico e o modo de vida dos extrativistas?

Costumo dizer que o Brasil é o único do mundo que tem a chance de construir um grande projeto de desenvolvimento diferente de qualquer país. Só que escolhemos importar modelos econômicos e ignorar a nossa própria vocação. Acredito muito que essa resistência que estamos fazendo agora, de manter nossa diversidade, nossa riqueza, uma hora será reconhecida. Não sei por quantas gerações vamos ter que resistir para chegar a uma nova safra de políticos, que enxergue nossa potencialidade. Esse país tem tudo. Se souber organizar, não perde para ninguém. Mas é tudo um processo. Viemos de um sistema colonialista, e esses interesses estão longe de serem afastados, somos reféns. Não sei até quando, mas o que fazemos hoje pode apresentar às futuras gerações uma oportunidade de ter o Brasil como um país soberano, realmente.

As populações extrativistas enfrentam problemas para defender seus territórios? O senhor, como liderança, já sofreu ameaças?

As invasões sempre ocorreram e estão ocorrendo, em diversos pontos, principalmente nos lugares em que o Estado, do ponto de vista institucional, está ausente, onde a comunidade fica à mercê dela mesma. Aí, é muito complicado. Há invasão de madeireiros e garimpeiros, extração ilegal de tudo o que se possa imaginar, um risco tremendo. O crime organizado está tomando também o interior da Amazônia, saiu dos morros e dos cartéis. E de fato, há risco de vida. Muitas lideranças tombaram, morreram. Sofri ameaças de morte por duas vezes, mas sempre lidei com uma certa frieza, para não tornar isso algo espetacular. Tem gente que gosta de fazer isso. Mas lido de forma muito natural, são recados que chegam para quem está na liderança, para intimidar. Mas não temos escolha. É manter a firmeza, ter cuidado. Fazemos uma agenda de estratégia. Por exemplo: quando há um enfrentamento, levamos lideranças de outros lugares para ajudar na proteção. Mas o risco há em todo lugar, inclusive aqui na cidade. Estamos em uma sociedade que, em qualquer lugar, você está ameaçado. Na sua casa. O ladrão entra, te assalta, te mata. É ter cuidado, zelo, não subestimar e saber lidar com a situação.

O Brasil está perto de ter políticas consistentes para a proteção da Amazônia?

Há um longo caminho para que possamos ter políticas públicas eficientes, que sejam adequadas à realidade, construídas com a participação da população. A nossa estrutura política é concentradora, é sequestrada pelo sistema capitalista, pelo sistema financeiro e por outros interesses que estão em jogo. Não considera a pequena população. As pessoas que estão nas favelas, na floresta, na beira dos rios. Os interesses são outros, e estamos longe de romper com isso. Vamos ter que conviver por muito tempo. Os investimentos de infraestrutura, obras como Belo Monte, são para atender o grande capital. Esmagam os pequenos. Chegam com tudo decidido e fazem de qualquer jeito, em nome de um projeto que destrói mais do que desenvolve. Precisamos estar atentos a isso e fazer denúncias onde for possível. Constranger essas autoridades lá fora.

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Patrícia Azevedo/Dom Total